segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Crônica 28: A FALA

Final de tarde de uma quarta-feira. Quente. Promessa de chuvinha no final do dia. Chegam à minha casa um senhor rechonchudinho e sua filha. Ela, uns sete anos. Animadíssima. Tivera um dia cheio. Milhões de novidades para contar. Não podia esperar. As palavras não cabiam na sua boca. Precisava falar. Ele, por sua vez, cansado do dia exaustivo que tivera.
Pararam ali para espairecer. A pequena queria uma torta de morango. Seu pai optou por mim. Um café. Cheio de chantilly. “Tudo bem”, pensei. “Com a quantidade de histórias que a garotinha deve ter pra contar, vale apena encarar o chantilly!”. Fui para a mesa. Doce... Muito doce!
E a menina falava... Ele chamou o garçom.
- Por favor... Gostaria de trocar de mesa... Há algum problema?
- Não senhor. Fique à vontade! – indicou.
A menina havia sido bruscamente interrompida. Mas insistiu. Permaneceram sentados uns 5 minutos em sua nova mesa.
- Então pai, quando a Luiza pegou o brinquedo, eu...
- Um momentinho querida... – chamou novamente o garçom – Olha, aqui está muito vazio, não há ninguém. Gostaria de me sentar em alguma mesa onde tivesse mais movimento... É possível?
- Claro senhor! Mudarei suas coisas não se preocupe...
Nessa altura eu já estava frio e o chantilly todo misturado em mim. A garota estava ficando chateada. Era uma história muito interessante...
- Posso falar?
- Claro, querida!
- A Luiza, pegou a corda e disse que brincava apenas quem ela quisesse...
- Um momentinho, meu amor... – Esticou a mão, novamente, acenando para o garçom.
- Este café está intragável! Traga-me outro, por favor!
O garçom providenciou outro imediatamente. Voltei novo. Purinho. Uma beleza. Pensei, “agora consigo saber o que aconteceu”. O pai pegou o jornal que havia trazido e começou a ler... Sua filha, indignada, apenas calou-se. Talvez pensasse no porque o pai não quis ouvir sua história... Era boa... Mas ele não ouviu...
Passaram-se uns dez minutos. O pai olhou para a menina que já havia comido sua torta - e não estava mais falante como antes – e disse:
- Acabou a torta?
- Sim.
- Então, vamos? Sua mãe nos espera...
Foram. Ela saiu cabisbaixa. Tristonha. Entrou no carro quieta. Talvez tentasse contar a mesma história de seu dia para a mãe. Em casa. A dúvida era: ela ouviria? Valeria à pena? Não sei a resposta. O que eu sei, é que esse cafezinho aqui, gostaria muito de tê-la ouvido. É pena não poder falar... Também...



Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Novembro/2008

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Crônica 27: A MÃE

Que final de semana agitado. Também, depois de tantos sábados e domingos chuvosos... O sol apareceu. E era criança brincando. Cachorro latindo. Tantos beijos apaixonados. Casais de mãos dadas. Famílias confraternizando. Uma festa. Adoro finais de semana como esse: Alegres.

Mais uma vez uma vez teremos cachorro na história. Mas, como já comentei, minha casa é muito freqüentada por esses clientes bagunceiros, peludos e de quatro patas. Na mesa estava eu, ornamentado com canela, uma jovem e um lindo “salsichinha”.
Tudo era paz. Ela parecia esperar por alguém. Estava feliz. Lia uma revista feminina. Tomava seu café. O pet – com o sugestivo nome de “Hot” – bebia água. Bem, como todos sabem, cachorro atrai crianças. Funciona quase como um ímã de pequenos.
Pois bem. Eu estava ali. Só admirando aquela algazarra. Do nada surge um lindo serzinho de cabelos ruivos e enrolados. Devia ter 1 ano – no máximo – pois vinha cambaleante. Mesmo com a dificuldade dos primeiros passos, correu o mais que pode para chegar até “Hot”. Alcançou-o.
A jovem segurou a coleira do animalzinho. Procurou pela mãe. “Hot” já não é mais um filhote. Sua paciência com petizes havia terminado. Ele queria apenas comer seu biscoitinho em paz. Mas o menino parecia empolgadíssimo. Veio com tudo. Sem idéia de força, começou a “acariciar” o cão.
A dona do cachorro começou a temer a reação de Hot.
- Querido, por favor... Melhor não brincar com ele... Ele está comendo... – dizia sem sucesso.
A criança parecia determinada. A mãe... Sumiu. Sem mais, a criança agachou-se, ficando cara a cara com o animal. Nesse momento a preocupação aumentou. Se Hot já estava se sentindo incomodado com tanto “carinho”, imagine só uma encarada... Imaginaria estar sendo desafiado...
- Queridinho, ouça a Tia, por favor, se afaste do cachorrinho... Cadê a mamãe?
- Sou eu. – Afirmou uma mulher alta e loura. Muito produzida.
- Meu filho a está incomodando? – Continuou a mãe.
- Não é isso. Acontece que eu estou preocupada. Hot já é um senhor. Não tem muita paciência com crianças... Entende...?
- É tem gente que prefere cachorros a crianças... – provocou a mãe. Muito irritada. Pegando o filho pelo braço.
- Calma senhora. Não é isso. Estou preocupada com a segurança do seu bebê. A senhora deveria ensinar a ele a jamais encarar um cachorro. Animais são puro instinto. A qualquer sinal de ameaça eles podem atacar. É perigoso.
- Olha aqui mocinha quem cuida do meu filho sou eu! Você não vai me disser o que devo, ou não, fazer! – A mãe falou. Falou. Falou. Nossa, até eu cansei daquele palavrório sem sentido.
Nesse instante a dona de Hot se irritou. Rosnou. Indignou-se... Provavelmente...
- Tudo bem. Então o dia que um cachorro arrancar o nariz do seu filho a senhora não reclame!
A moça, então, levantou a revista. Escondeu-se. A mãe, por sua vez, pegou seu anjinho no colo e saiu batendo os pés. Nossa. Pra que? Até onde eu sei e vi, a dona do cachorro tentava apenas alertar à mãe do menino quanto a alguns cuidados.
A mãe foi para casa. Brava. E todo o ódio injustificado que sentiu, pela “mocinha” do cachorro, provavelmente se voltou para ela mesma. Uma dor de cabeça. Uma azia. E o pior: só de birra não ensinará seu filho a lidar com cachorros... O que me leva a crer que a solidariedade caiu tanto em desuso, que hoje é considerada uma provocação. Uma invasão.



Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Novembro/2008

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Crônica 26: A Desconhecida

Uma jovem. Sentada tranquilamente. Acabando de devorar seu café. Ou seja, me devorar. Pronta para ir embora. Havia acabado de pegar sua bolsa, agenda, celular. Sem mais, aparece outra mulher. De uns quarenta anos. Bem arrumada e muito disposta a conversar.

- Janaína! Não acredito encontrar você! Menina deve ter um ano que não nos vemos!

Ela estava realmente exultante em encontrar-se com a outra. Janaína, por sua vez, não se recordava da “amiga”. Sua testa enrugou. Formaram-se linhas de preocupação e dúvida. Ficou com um ar perdido. Cada centímetro de sua face dizia, claramente, “quem é esta figura?”. Porém, diante do enfático assédio e, é claro, do fato de a outra saber seu nome não poderia ter outro gesto que não fosse o de retribuir-lhe o cumprimento.

- Oi! Faz tempo mesmo, hein!? Um ano? Como o tempo está passando rápido atualmente!

- Nem me diga, menina! – disse risonha a senhora.

- Pois é... – Janaína estava louca para sair dali... Sua próxima fala seria a despedida.

- Posso me sentar com você?

Era tudo que Janaína temia. Ela de fato não tinha outro compromisso. Mas daí a sentar-se e conversar com alguém que não se conhece, sobre assuntos tão desconhecidos quanto... Já era demais.

- Desculpe querida, estava de saída vamos combinar algo qualquer dia desses... Passe-me novamente seu telefone... – eu, vendo tudo de camarote, imaginei: “perfeito!”. Ela se saiu bem demais!

- Que pena! Anote ai... – passou o número e confirmou se a outra havia anotado corretamente...
Começou a chuva. Muita chuva. Uma verdadeira tempestade. A amiga apressou-se. Puxou uma cadeira, na qual, praticamente empurrou Janaína.

- Que chuva boa! Assim, poderemos matar as saudades!

- É verdade...

Janaína estava nitidamente incomodada com aquela situação. Sua amiga parecia não notar. Ou fingia? Pediram mais café. Com chantilly. Canela. Açúcar. Meu pai! Quem se incomodou fui eu. Até enjoei. Quanto doce. Enfim... O cliente tem sempre razão.

- Então... Como vai indo a vida? – já que a única solução era conversar com aquela mulher. O melhor seria um assunto genérico.

- Vai bem. Caí de cama há três meses. Um horror. Hoje é o primeiro dia que saio de casa... Nada é por acaso!

A animação da mulher parecia não contagiar Janaína. Ela discursou sobre toda sua vida, filhos, marido. Falou. Falou. Falou. Com certeza ela precisava conversar com alguém. Muitas vezes as pessoas precisam falar e não têm quem as escute. Escolhem o primeiro conhecido que vêem pela frente. E o monólogo rolando solto. Eu ainda estava intacto.

- E o Tobias? Que cachorro lindo! Meu Deus! A minha morreu, você soube?

Foi nesse momento que Janaína se recordou de onde conhecia a histérica senhora. Dos passeios matinais que costumava fazer com seu labrador no Parque Ibirapuera. E o assunto se estendeu. Meia hora, no mínimo. Até que a garçonete esbarrou na mesa. Vendo a aflição da garota, resolvi dar uma forcinha: tombei. A maior sujeira. As duas se levantaram assustadas. Foi a deixa que ela precisava.

- Nossa! Viu a hora? Preciso ir... Tobias está sozinho desde cedo. É uma pena mesmo!

E antes que a outra pudesse dizer alguma coisa, Janaína levantou-se, deu-lhe dois beijinhos, foi até o caixa e sumiu aliviada.

Fiquei eu e a senhora. Agora triste. Sua melhor amiga havia morrido. E, pelo jeito, não tinha muitas pessoas com quem conversar. Permaneceu ali. Parada. Olhando pro nada. Por um instante imaginou ter encontrado alguém que realmente a quisesse escutar.



Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Novembro/2008

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Crônica 25: O CATADOR DE PAPÉIS

Ai ai. Mais um dia começa. Movimento insano. Pessoas falantes. Mesas para atender. Cachorros latindo. Pessoas chatas. Pessoas legais. Tristes. Felizes. Ocupadas. A passeio. Enfim, a vida recomeça com seus tropeços cotidianos. Algo muito interessante me aconteceu ontem.

Um homem. Chiquérrimo. Um jornal. Um cachorro. Homens, normalmente, quando sentam sozinhos sempre trazem consigo algo pra ler ou um computadorzinho portátil. Qualquer coisa que mostre que eles estão muito ocupados. É como se sentissem culpa por estar ali, à toa, apenas curtindo um fim de tarde, na companhia de seu café. Serve também como um escudo. Para que ninguém os incomode. Muitas vezes imagino que vou pegar um deles com o jornal de cabeça pra baixo...

Este homem sentou-se. Amarrou Donato (Dinho para os íntimos) na cadeira. Pediu água para o cachorro. Era um bichinho especial. Usava rodinhas no lugar das patas traseiras. Como uma cadeira de rodas. E, por último, abriu seu escudo protetor, o jornal. “Assim não serei incomodado”, pensou.

Fora dos meus domínios, no meio da rua, vinha devagar um catador de papel, com seu carrinho e, em cima do monte de papelão recolhido, um simpático vira-lata. Muito atento. Quando o catador de papéis viu Donato. Parou. Sensibilizou-se. Não agüentou.

- Senhor, com licença... Desculpe incomodar...

O homem que havia acabado de dar um gole em mim – expresso e sem açúcar – me depositou no pires. Nervoso por aquela invasão. Olhou bem o outro e respondeu:

- Pois não?

- Gostaria de parabenizá-lo!

O homem dobrou o jornal. Sem entender. Talvez um pouco assustado.

- Como assim?

- É. Gostaria de parabenizá-lo. Por amar tanto seu cachorro. Por lhe ser tão dedicado. Como ele chama?

- Donato

- No albergue onde eu ficava – quando ainda era permitido cachorro em albergues – tentaram matar meu companheiro. Apenas porque ele latia. Pode um negócio desses. Eu fui muito claro. Avisei o meu compadre: se encostar um dedo nesse cachorro, você é quem morre! “Tô” certo, não “tô”??

- Claro que sim! – respondeu o homem cada vez mais interessado na conversa. Dobrou o jornal e colocou-o ao meu lado, na mesa.

- Pois é! Nunca mais fiquei em albergue. Agora, nem dá, não permitem mais a entrada de cachorros. Vou te falar... Esse cara aqui é meu companheirão! Vai comigo pra tudo que é lugar. Se alguém tenta encostar-se a mim enquanto durmo, ele faz o maior furdunço. Salvei-o de um dono violento. Cachorro sabe o que é gratidão. Eles, sim, sabem amar.

O homem que estava comigo em suas mãos começou a entender aquele sujeito. Ele trouxe palavras interessantes para seu dia reflexões.

- Bom, senhor, vendo-o com esse cachorro – machucado – entendo que o senhor não quis matá-lo. Ama-o como ele é. Ele é para o senhor exatamente o que o meu amigo aqui representa pra mim. Alguém da família. Ele é a minha casa. Parabéns!

E saiu. Deixando o homem, eu e Donato pra trás. Voltei à mesa em uma versão mais quente e com leite. Reparei que meu companheiro de mesa não abriu seu jornal novamente. Ficou observando o homem com o carrinho e cachorro sumirem no horizonte. Era isso mesmo que Donato significava para ele. Companhia. Lar. Ele também havia salvado seu amigo. E seu amigo salvara-o igualmente. Seriam eternamente gratos. Um ao outro.



Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Novembro/2008