quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Crônica 86 - Sobre Projetos, Vidas e Diferenças




Chegou. Correndo. Colocou suas coisas em cima da mesa. Fez sinal para o garçom. E disparou para o banheiro. Eu cheguei com a mesa ainda vazia. Aquilo me deu uma curiosidade... Enfim, esperei que voltasse do banheiro para que pudesse conhecer meu novo interlocutor. Voltou. Tinha cabelos compridos. Batom nos lábios. Brincos enormes. E um óculos de sol,  grande e quadrado. Imediatamente pensei: "uma mulher". Suas mãos se aproximaram de mim. Unhas longas e pintadas de azul-céu. Muitos anéis nos dedos.


Sabe, além de bocas, eu também conheço bem as mãos. Minha xícara e as mãos são intimas. Eu sei muito de uma pessoa só pela forma de segurar minha xícara. E, dessa vez, senti algo diferente quando ela pegou delicadamente na minha asinha. A pele dessa mão era grossa. Não correspondia às suas características visuais. Eram mãos ásperas.


Mas vai saber, ela podia ter um ofício que exigisse muito de suas mãos. Talvez não cuidasse delas. De qualquer forma era diferente. Estávamos em silêncio. Ela me ergueu do pires. E foi lentamente levando-me à sua boca. Nesse caminho consigo saber muito mais sobre meus queridos companheiros. Vi que ela não tinha seios. Sua pele do rosto era mais grossa e havia abusado da base na maquiagem. Quando cheguei à sua boca vermelha tive certeza: Não era uma mulher.


Interessante. O inusitado também acontece comigo. Engraçado como o ser humano é complexo. Nós cafés somos apenas cafés. Homens e mulheres não. Vocês nascem como um projeto inacabado. No entanto, o próprio ser humano não consegue entender isso. Muitos olharam. Comentaram. Fizeram piada. E ela lá. Firme. Tomou seu café tranquilamente. Pagou. Pegou sua bolsa Chanel e foi embora.

E deixou, para quem ficou, um delicioso perfume no ar e uma xícara imensa repleta de algo chamado reflexão. Sim. Nos deixou refletindo sobre as novas configurações. Sobre as novas formas de ser. Existir. As novas formas de se mostrar ao mundo. Sem medo de ser diferente. Desejando apenas ser humano.

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        
 Nov/2013

domingo, 3 de novembro de 2013

Crônica 85 - Sobre Beagles, Ídolos e Moda


Era um lindo domingo de sol. Ela chegou com sua cadelinha. As duas já são minhas conhecidas. Eu já sei que Ela tem todo um ritual a cumprir antes de sentar. Primeiro passo, colocar a bolsa sobre a mesa. Segundo passo, amarrar a cadelinha à sua cadeira. Terceiro passo sentar. É nesse ponto que ela se vira, chama a garçonete e diz: "um cafezinho, por favor... Ah! Você pode trazer um pouco de água para a minha cachorrinha? Obrigada!". É nesse ponto que eu entro.

Tudo tranquilo até aqui. Cheguei quentinho. Sentei-me junto a elas. Minha amiga estava bem. Mas um tanto quanto tristonha. Pelo que entendi teve um bom final de semana. Mas a vida não é sempre o que queremos ou planejamos. E ela é o tipo de pessoa que faz e cumpre seus planos. No entanto, dessa vez não deu.

Estava lá. Sentada. Bebericando-me aos poucos. Usufruindo do nosso momento. Aproveitando sua própria companhia. Olhava para as unhas, que haviam sido feitas um dia antes, e pensava: "Estão ótimas! Mas na terça tenho um compromisso... Talvez estraguem até lá...". Passava as mãos no cabelo. Olhava para os transeuntes.

Mas toda esta paz durou muito pouco. Sua cachorrinha. Que sempre fora apenas sua companheira. Esta semana deixou de ser apenas mais um cachorro nas ruas. Tornou-se especial. É um Beagle. E todo aquele instante de reflexão e bobeiras foi por água abaixo.

"Olha lá, um Beagle!", disse uma menina para o namorado. "Papai! Um Beagle", gritou um garotinho esfuziante. E assim foi. As mais diferentes pessoas. Nas mais diferentes idades. Todos gritavam. Apontavam. Meu Deus pensou minha companheira, mais um pouco vão pedir autógrafo. Af...!

Mas até então ela conseguia lidar. Começou a ignorar o assédio. Seguiu em seus pensamentos. Fazendo carinho em seu Beagle e se deleitando com seu segundo Cafezinho. Até que de repente se aproximou da mesa um casal. Os dois com mais ou menos 60 anos. E eles queriam conversar. "Gente, o que é isso que estão fazendo? Você viu? Chorou muito? Você ficou triste? Fico imaginando a dor que deve ter sido...

E nesse tom seguiram-se diversas perguntas. Ela não teve nem tempo de responder. Quando viu a senhora já contava sobre o câncer de uma amiga. Depois algo sobre colocar óleo no ouvido. Enfim. Distraímos-nos nesse ponto. Mas eles não foram os únicos. Um pai com uma criança. Uma família inteira. Mais idosos. E por ai vai. Todos com as mesmas perguntas.

Era como se quisessem ver o sofrimento alheio. Se quisessem fazê-la sentir-se culpada. Era uma forma questioná-la. "É claro que você ficou arrasada". Bom, se ainda não estava, esse era o momento de ficar. Este caso do Instituto Royal é realmente terrível. Mas ela já sabia. E, obviamente, sofria por eles. Mas fez o que podia. Talvez ainda não estivesse com tudo esclarecido na sua cabeça. Vai saber.

Ela não podia mais suportar aquele falatório. Era muita pressão. Talvez nem a cachorrinha estivesse aguentando. Que pressão. Só faltou alguém se sentar junto a ela na mesa. Mas isso não aconteceria. Ela não permitiria. Parecia que estavam diante de algo que nunca viram. O Beagle virou um ídolo.

Ninguém se preocupou se estava incomodando. Se ela esperava alguém. Se ela estava no telefone. Todos queriam e se preocupam apenas em estar perto de um Beagle. É triste que situação como as do Instituto Royal aconteçam. Mais triste que tantos animais sofram maus tratos. Mas os beagles são cachorros. Não são ídolos. São animais que merecem ser respeitados como qualquer outro. Este é um caso sério. Não pode virar moda.

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        
Nov/2013