quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Crônica 19: O SAPATO

Com tanto tempo de mesa eu fui aprendendo algumas coisas sobre as pessoas. Uma delas diz respeito aos sapatos escolhidos. Alguém já parou para prestar atenção aos sapatos alheios? Ou até mesmo aos próprios sapatos?

As mesas do salão, onde sou servido, são aquelas de tampo transparente. Algumas têm nervuras. Outras são lisas. Por isso, consigo enxergar tão bem os sapatos. E são de todos os tipos. Chanel, scarpin, masculino, engraxado, fosco, sandália, chinelo e por aí vai.

Hoje. Por exemplo. Estou em uma mesa com um casal. Ela usa scarpin forrado. Tecido colorido. Deve ser uma pessoa exagerada. Que gosta de se destacar em meio aos outros. Deve adorar dourado. Ir às compras deve ser um de seus passeios prediletos. Digo isso porque ao cruzar as pernas notei que a sola estava limpa. Pouco uso. Imagino que tenha pilhas de sapatos em seu closet.

Já ele, usa uma havaiana surrada. Daquelas bem confortáveis. Que já estão até com a marca do pé gravada. A sola então... Um Deus nos acuda. Tem até a marca de um chiclete que um dia grudou ali. Saiu. Mas ficou marcado.

Um Scarpin novo e uma havaiana usada. Com certeza o que ele menos quer é ir ao shopping. Deve fugir de compras. Provavelmente não gosta de se sentir preso a normas sociais. Moda, por exemplo. E seu guarda roupas deve ter o básico. Calça. Camisetas.

O que me leva a imaginar que a havaiana triste e o scarpin reluzente muito têm em comum. Ele também deve gostar de se destacar na multidão. Só escolheu uma forma diferente de fazer isso. Não fosse assim, ele estaria de sapato ou tênis. Considerando o frio que anda fazendo em São Paulo.

Talvez a havaiana seja apenas estilo e, se assim for, ele também está preocupado com a moda. Ou, não fugiria tanto dela. Possivelmente tem discursos prontos sobre a alienação do mundo fashion. A escravidão dos modelos de perfeição. O corpo perfeito. A falta de personalidade e a massificação provocada pelo consumismo desesperado em busca de apenas aparência.

Blá. Blá. Blá. É. Sapatos podem revelar muito sobre quem os usa. Não mentem. Não ludibriam. Apenas são. Objetos. Exatamente como eu. O seu cafezinho. Apenas sou um cafezinho. Sirvo. Venho até sua mesa da forma como você quiser. E observo. Tento decifrá-los. Não consigo. Mas consegui entender que mais que estética e prazer, sapatos e cafés são uma questão de estilo de vida.



Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Setembro/2008

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Crônica 18: A NOTÍCIA

Mais um dia de trabalho. Mais um dia de histórias. De vidas cruzadas. Assuntos levantados. Dessa vez o fato chegou até mim. Mas aconteceu bem longe do meu ambiente. Meu lar. “A tecnologia é uma maravilha”, diriam alguns. Mas a humanidade anda decepcionando. Diz um simples café.

Entra um senhor. Parece tranqüilo. Procura uma mesa. Escolhe bem. Decide-se pela mesa do canto. Acomoda-se. Pede uma xícara de café. Coloca o celular sobre o tampo. Ao lado do açucareiro. Ele usava uma pochete. Que é delicadamente depositada na cadeira ao lado.

Devia ter passado em alguma banca de jornais antes. Tinha um jornal diário e uma revista semanal em suas mãos. É. Quando eu cheguei, ele havia acabado de abrir a página de cultura. Adoro. O ser humano ainda não inventou nada melhor que a cultura.

Em seguida fomos para a parte de economia. Aí a coisa começa a se complicar um pouco mais. Enfim. Fomos lendo todo o jornal. Na ordem dele. Óbvio. Muita notícia triste. Coisas feias. Maldades. Medo. Porém, infelizmente, nada de anormal.

De repente mais uma página virada. Um barulho ensurdecedor. Considere o meu tamanho. Uma ventaria descomunal. Uma sacudidela. Consegui ler. Fiquei aterrorizado. Dois irmãos pequenos foram assassinados pelo pai e a madrasta. Não bastasse, foram cruelmente esquartejados.

Esfriei. Continuei lendo. As duas crianças haviam pedido socorro aos órgãos competentes. Silêncio. Foram levados pelas mãos ao pai. Foram executados na mesma noite. Triste? Não é triste. É impensável. Injustificável. In. In. In.

Não poderia deixar de trocar minha indignação. De colocá-la aqui. Primeiro. O pai ter este tipo de atitude com seus filhos. Louco. Monstro. Contudo, Louco. A madrasta. Totalmente insana. Descompensada. Ciumenta. Agora, a Conselheira Tutelar... Representante do poder civil. Sã. Responsável por seus atos. Negou ajuda. Julgou errado.

A humanidade está cada dia mais insensível. Menos atenta às sutilezas. Nesse caso às não sutilezas. Talvez, casos como esses tornem homens e mulheres desconfiados em relação ao próximo. Quiçá apenas por precaução.

Porém, todavia, contudo, um café, apenas um cafezinho. Aquele de todo dia. Ainda não perdeu a capacidade de se indignar. E deseja a todos que estão lendo estas poucas linhas que nunca a percam também. Desejo a vocês sempre menos. Menos arrogância. Menos indiferença. Menos insensibilidade. Menos medo. Menos páginas policiais nos jornais. Menos descaso. E, conseqüentemente, menos violência.



Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Setembro/2008

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Crônica 17: A ERUDIÇÃO

As pessoas são realmente muito engraçadas. Valorizam o lirismo à sabedoria prática. Quanto mais difícil alguém discursa, mais sua opinião é valorizada. Já perceberam? Eu, pessoalmente, dispenso falas cheias de pompa. Principalmente quando o narrador sabe muito pouco do que está falando. Quando há apenas a intenção de impressionar.

Falo isso porque semana passada fui parar em uma mesa dessas chatas... Mas muito férteis para o nosso papo. Eram dois caras. Moderninhos. Cheios de si. Vinham de uma sessão de cinema. Cult. Claro. Fazia frio. E muita garoa.

- Dois expressos curtos! – Sentenciou o cara da direita.

- Então... Gostou do filme?

- Gostei... Interessante...

Eu cheguei. Curioso, como sempre. Os dois deram uma pequena bicada no meu conteúdo. “Não sei por que eles insistem em dar um toque amadeirado no café... Prejudica o sabor...” resmungou um dos homens. Espera um pouco. Toque amadeirado? Nunca ouvi falar de café com toque amadeirado. Eu definitivamente não tenho.

- Você entende tanto assim de café? Pra mim está ótimo!
- Não notou? Está óbvio!

Aquele esnobe não entendia nada de café. Mesmo assim continuou.

- Pois é, esses baristas modernos insistem na customização. Já reparou como deformam o DNA do grão? É revoltante...

- Jura? – respondeu o outro incrédulo – Pra mim está uma delícia!

- Delícia nada... Tá certo que é uma questão de habituar o palato... Mas dizer que este café está bom é um ultraje!

E assim foi discursando sobre mim. Falando mal de mim. Na minha frente. Escolhendo as palavras. A dedo. Fiquei indignado. Torci muito para que o café caísse e manchasse todo o seu pulôver cinza clarinho. Não cai. Não manchei.

Meu tão enfático crítico deve ter lido algum artigo, porém, muito provavelmente, sobre vinho. Mas ele não viu mal nenhum em expor seus “conhecimentos” e impressionar o amigo. Tolo. Por que não disse o que sabia? Por que acreditou em alguém tão desabilitado para falar sobre o assunto?

Eu sei a resposta. Porque o outro fez cara e voz de quem sabia do que estava falando. Não aceitou interferências. Não se deixou questionar. E eu. Fiquei ali triste. Fui abandonado. Xingado. Mal tratado. Não pude responder. Eu não tenho DNA. Tenho safra. Nem tão pouco tom amadeirado. Tenho gosto de prazer. De acolhimento. Mas ainda assim, tenho coração. Entristece-me as pessoas darem ouvidos a eruditos tão ignorantes.



Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Setembro/2008