sexta-feira, 9 de março de 2012

Crônica 66: O Conceito


"Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem" - Rosa de Luxemburgo


Ela vinha quieta. Caminhava lentamente. Roupas simples. Bermuda amarela de malha. Camiseta branca com inscrições de algum partido político. Calçava sandálias Havaianas com borrachas tão gastas que mais pareciam um papel e evidenciavam seus calcanhares grossos e rachados. Unhas vermelhas maltratadas. Descascadas. Cabelos presos em tranças curtas, como uma tiara, usadas para prender seus poucos e quebrados fios. Nas mãos um saquinho de supermercado.

Não. Não era ela que estava comigo na mesa. Mas antes de continuar a história, seja sincero, quando você leu a descrição acima e começou a montar a personagem na sua cabeça, como você a imaginou? Branca, negra, alta, baixa, magra, gorda... Seja honesto consigo...

A pergunta pode soar estranha, mas vai fazer sentido quando ler o “causo” de hoje. Estava sobre a mesa. Como de costume. Acompanhado por um rapaz. Tinha uns 30 anos. Bermuda larga. Camisa social. Um ser, digamos, alternativo. Trazia consigo uma bolsa tiracolo que pendurou na cadeira.

Não me dedure. Por favor. Mas ele tirou um cigarro da tal bolsa. Acendeu. E estava lá. Bem tranquilo. Degustando a mim. Relaxado. Quando nossa amiga do início se aproximou. Muito corcunda. Muito sem graça. Quase como quem jamais é vista. Disse: “Oi senhor, eu não sou bandida, fique tranquilo. Não estou vendendo nada. Nem quero um prato de comida. Eu trabalho ali” e apontou o supermercado que está estabelecido bem próximo a mim.

O rapaz assustado interveio: “por favor senhora, o que é isso? Pare. Porque eu pensaria tudo isso?”. A mulher incrédula olhou para o rapaz, como se não entendesse nada. “Como por quê? Eu sou negra. Pobre. Mulher. Estou mal vestida. Suja”. E completou: “você não está com medo de mim, não?”. “Não”, respondeu rapidamente o jovem.

Os olhos de jabuticaba da interlocutora transformaram-se imediatamente em uma piscina. E, ainda assim, brilhavam. “Mas eu assusto. Sou ‘preta’. Sou pobre. Olhe minhas mãos (esticou-as para frente). Faço reciclagem... Por isso cheiro mal.”.
O moço tremia ao me segurar. Não podia acreditar no que estava ouvindo – talvez você leitor também não acredite. Mas aconteceu. – Como podia? “Sabe, hoje é meu aniversário. Faço 49 anos”. “Parabéns!”. “Eu tenho uma casinha, mas não terei festa... peço que, por favor, não me dê parabéns. O melhor presente hoje foi ter encontrado o senhor. Nunca na vida fui tratada com dignidade. Parabéns ao senhor que é gente toda vida”.

E a primeira lágrima escorreu pelo seu rosto. Segurou a mão do meu amigo. Com força. “É a primeira vez que me tratam assim. Como se eu fosse alguém. Como se ao invés de ser uma simples catadora de papel, eu EXISTISSE.”. Secou seu rosto. Que a esta altura já estava completamente molhado e salgado pelas lágrimas.

A expressão dele é um misto de susto. Assombro. Consternação. Apertou sua mão de volta e olhou-a com ternura. “Bom, era um cigarro que a senhora queria?”. “Sim”. “Tome”. Entregou dois cigarros na direção dela. “Obrigada por não me temer. Nunca vou esquecer este momento. Quando fui alguém. Desejo só o melhor para o senhor.”.

E saiu. Do mesmo jeito que chegou. Corcunda. Simples. Mas com algo diferente. Ela tinha um lindo sorriso no canto da boca. Um sorriso preso. Afinal, pela dureza da vida, não poderia soltá-lo. Mas estava dentro dela. Preso, mas era real.

Ele olhava para frente. Tocou minha xícara. Sem nem olhar pra mim. Deu um gole. Frio mesmo. Engoliu-me todo de uma só vez. Calado. Pensativo. Triste. Incrédulo. Emocionado... Mesmo que com a emoção presa. Ele era um homem. Não podia chorar numa mesa de café. Mas, ainda assim, a emoção estava lá. Presa. Mas estava lá...

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Março/2012