segunda-feira, 28 de julho de 2008

Crônica 12: A FOTOGRAFIA

Mesas movimentadas. Adoro. Quatro mulheres. Uma linda tarde de sol. Quando me apresentei o papo já estava no fim. Isso acontece muitas vezes. As pessoas vão até a minha casa. Comem. Bebem. Depois... “Garçom! A continha e o café”. Sobra-me pouco tempo de convívio. Contudo, sou uma boa desculpa para estender o papo com os amigos.

Eu estava louco para ir até aquela mesa. O clima era animado. Empolgante. Suas integrantes eram de gerações diferentes: uma jovem na casa dos vinte. Duas na casa dos cinqüenta. E uma senhora com uns setenta e poucos. As idades são aproximadas, afinal, a medicina estética anda tão avançada que se torna praticamente impossível garantir o tempo de vida de alguém.

Fui colocado sobre a mesa. A conversa rolava solta. As risadas também. Era uma família. A avó, suas duas filhas e sua neta. Que delícia. Que troca boa. Falaram de tudo. Relembraram. Reviveram. Viveram. E, como não podia deixar de ser, fofocaram muito. Muito.

- Eu trouxe a máquina! – incentivou a neta. Mesmo sabendo que tirar foto naquela mesa não seria tarefa das mais fáceis.

- Ah! Não! - disseram em uníssono as outras três.

- Como não? É tão raro a gente se encontrar... Só a gente... Vamos vai... Só uma... Pra registro... – A neta insistiu. Insistiu. Argumentou. E como tinha argumento a menina. Nossa.

Conseguiu. Ainda assim, não foi tranqüilo. Cada uma precisava cuidar de um detalhe importantíssimo. Batom. Maquiagem. Arrumar a roupa. O Cabelo. Tirar os óculos de grau. Ufa! Por fim, colocar os óculos escuros.

Tudo pronto. “Pode tirar”. As primeiras a serem fotografadas foram a mãe e a tia. Pose. “Essa não ficou legal, filha, tira outra?”. Esse é o problema com as câmeras digitais: podemos ver a foto antes da revelação. A primeira nunca está boa.

A neta tirou outra. Outra. Outra. Outra. “Agora chega. Está ótimo!”. Gargalhadas. Para espanto geral, a avó resolveu participar da gostosa bagunça. Muito mais prática. Colocou seus óculos escuros e decretou: “tire. Mas do lado de lá”. A menina mudou de lado. Tirou a foto. “Precisamos de uma foto das quatro. Cadê o garçom?”.

Coitado do garçom. “Olha se o senhor puder tirar a foto só da parte de cima é melhor”, aconselhou a mãe gentilmente. Risos. Risos gostosos. Escandalosos. Dessa vez quem não gostou foi a neta. “Não ficou boa o senhor poderia tirar outra?”. “Claro. Mas não dá pra tirar mais pra cima” – comentou o garçom, muitas vezes malabarista, desacorçoado. “Não, a foto está ótima. O meu cabelo é que não ficou legal”.

Todas se arrumaram novamente. Pacientemente, ele bateu outra foto. Essa sim. Ficou ótima. Eu devo ter saído em todas, mas não pude ver as fotos. Sou fotogênico. Não há problema. A neta-fotógrafa-modelo acabou de me consumir. As quatro saíram. Conversando. Felizes. E, assim, seguiram rua afora. “Filha você vai me mostrar as fotos antes de colocar na internet, né?”.


Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Julho/2008

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Crônica 11: A DISCUSSÃO

Quando ele chegou eu já estava na mesa. Muito acomodado. Sentindo o perfume da tarde, de uma seca tarde de sábado em São Paulo. Sua companheira de mesa já havia solicitado ao garçom dois drinks. Agora sou chamado de drink. Perde um pouco da essência. É verdade. Mas sofistica. Cheguei gelado. Eles me queriam assim. E eu... Eu sou como você desejar.

Um rapaz não muito alto acomodou-se na cadeira. Senti seu corpo entregar-se ao assento e relaxar por completo. A moça – aquela que havia me chamado – conversava com ele sem parar. Mas ele nada falava. Apenas olhava atentamente para os lábios de sua interlocutora.

Imaginei que ela estivesse falando ao celular. Não estava. Aliás, o celular estava colocado bem próximo a mim. Pronto para me proporcionar um terrível terremoto com suas vibrações insuportáveis. Continuei invocado. Isso não existe. Ela fazia perguntas e ele só olhava para seus lábios. Nem um som.

Estranhei. De repente fui derrubado. O que acontece com essa gente? Pensei. Eu não sabia. Havia sido derrubado por sua fala histérica. Intriguei-me. O cardápio fora solicitado. Ele deitou o livreto na mesa e leu-o. Ele era o que costumam chamar de um portador de necessidades especiais. Sendo menos politicamente correto e mais objetivo: era surdo e era mudo.

Nesse exato momento entendi. Sua ausência de fala e sua fixação nos lábios da amiga, nada tinham de paquera ou timidez. A expressão era outra. A via era outra. Mas a linguagem existia. E, no caso, a irritação também. Apesar de não saber o que dizia, senti na força de seu corpo a indignação ante a situação apresentada pela amiga. Indignação essa “dita” através de gestos fortes e intensos e um significativo balé de mãos e braços. Em todas as direções.

E a discussão foi esquentando. Seu olhar cada vez mais preso aos lábios dela. O corpo cada vez mais solto. Mais enérgico. Ela parou de falar. Baixou a cabeça. Parando de movimentar seus lábios. Impediu o acesso às suas idéias. Respirou. Pousou sua mão no braço insano do rapaz. Tão leve quanto um pássaro em seu galho. Sugeriu silêncio.

O silêncio veio. Ele parou de se movimentar. O silêncio veio. Olhou-a diretamente nos olhos. Abraçou-a. Calma. E enquanto se abraçavam com ternura deitou-lhe os pensamentos nos ombros. O tato. O poder do corpo. A expressão. O toque. Ouvir, falar, são importantes, mas podem ser realizados de formas outras. Sem a voz. Sem o som. E assim mesmo estrondar. Ecoar. Ele era realmente especialíssimo, pois sabia comunicar. E soube exatamente a hora de parar.



Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Julho/2008

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Crônica 10: O “PIANINHO”

Pessoas. Iguais. Diferentes. Pessoas de todos os tipos passam pelas minhas mesas. Algumas se sentam e apreciam um delicioso café – desculpe a “modéstia” – outros preferem suco, chá, refrigerante. Não importa. Alguns entram e saem correndo. E Existem aqueles que passam sempre pelas mesas. Parando em cada uma. Nada podem consumir. Estão ali trabalhando.

Não me refiro aos garçons ou garçonetes. Refiro-me aos vendedores ambulantes. Aqueles que muitas vezes não são, nem mesmo, vistos. Há vendedores de tudo que é jeito. Um dos mais assíduos é um senhor, na casa dos sessenta anos. Seus trajes são simplórios. Mas percebe-se seu esforço para estar sempre bem arrumado. Preocupa-se com seus consumidores.

Ele vende um instrumento musical, que não se sabe ao certo qual é, uma mistura de mini-piano com harpa. Estranho. Barulhento. Ouço-o chegar ao longe. E o que indica sua presença é o “parabéns a você” que ele entoa em seu trajeto labiríntico entre as mesas. O sorriso é outra de suas marcas. Sua aproximação é sempre delicada: sorri e inclina o objeto na direção do comprador em potencial.

É um objeto difícil de vender. A maioria nem olha. Apenas acena negativamente. Outros simplesmente não enxergam o simpático senhor. Já eu sempre o ouço. Sempre o vejo. Pergunto-me: quem é esse homem? Por que se dedica a um trabalho tão árduo? Terá ele uma família? Filhos? Onde será que ele mora? Ele gosta de seu ofício? O que ele faz para se divertir?

Tantas outras perguntas fervem em mim. Tal qual a água borbulhante usada no meu preparo. Minha curiosidade vai além da figura do velho homem. Novamente estou impossibilitado. Não posso satisfazê-la. Nunca tomarei um café com o doce senhor do “pianinho”. Assim, jamais conseguirei decifrá-lo.

Como ele tantos outros passam vendendo camisetas, balas, doces, panos de prato, bijuterias e acessórios em prata, sândalo, etc, etc, etc. Nenhum é notado. Nenhum é ouvido. Nenhum é enxergado. Não por aqueles que estão no café. Seu público-alvo. Será que algum dos meus degustadores e companheiros já parou para pensar no quão difícil é passar de mesa em mesa vendendo objetos inusitados? Caminhar dia e noite para no fim do dia, talvez, perceber que seu esforço foi em vão?

Imagino que não. Mas eu, um café intrometido e enxerido, penso. Tento olhá-los. Conhecê-los. Impossível. A angústia do impossível. Ainda vou conseguir entender como seres da mesma espécie conseguem ignorar tanto uns aos outros. Conseguem não se interessar por dificuldades alheias. Um olhar. Um “muito obrigado”. Pequenas considerações e valorizações daquele trabalho. Daquele ser humano. Com tão pouco se pode fazer com que alguém se sinta especial. Por que não?

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Julho/2008

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Crônica 9: O VELHO

Antes de servos jovens, adultos ou crianças somos seres. Humanos ou cafés. É difícil entender. Alguns acham que por terem uma ampla vivência podem faltar ao respeito. Outros acham o mesmo por terem experiência de menos. Eu sou centenário e jamais utilizei isso como argumento para não atender alguém. Estranho.

Muitas vezes sou obrigado a presenciar cenas as quais preferiria não ter assistido. Decepção. Era segunda-feira e compartilhava a mesa comigo um senhor. Em média setenta anos. Uma mesa calada. Sem dilemas. Sem palavras.

Senti-me um champanhe ao ser apreciado. Fui decifrado em todas as minhas notas. Como um vinho. Fui consumido sem açúcar, in natura. Adoro quando me degustam puro. Sinto-me valorizado. Odeio ficar melado, como muitos gostam. Parece que anseiam esconder meu sabor e me tornar mais palatável. Não sou doce. Sou amargo. Sou real.

- Sua Burra!

Minha reflexão havia sido interrompida por essa indelicada colocação do senhor à minha frente. Medo. O que gerou a revolta do meu plácido saboreador foi uma senhora que passou pela mesa e sem querer esbarrou a bolsa nele. Esbarrou.

- O senhor está falando comigo? – perguntou incrédula.

- A senhora passou com a bolsa por cima de mim.

- Me desculpe, eu não havia percebido! Mas isso não é jeito de falar com as pessoas! Tenha mais educação!

- Só faltava essa! Eu tenho setenta e quatro anos! Eu falo como quiser!

Todos os que estavam acomodados nas outras mesas olhavam. Uma cena grotesca. A senhora parou, respirou fundo. Caminhou até a mesa em que eu me encontrava. Roxa.

- Não estamos em uma competição para descobrir quem é mais velho. O senhor pode ser idoso, mas isso não lhe confere o direito de andar por aí agredindo os outros por nada. Se não sabe conviver em sociedade não saia de casa!

Dito isso, deixou o homem esbravejando e retirou-se. Desistiu de tomar seu café.

Um homem de setenta e quatro anos – como ele faz questão de afirmar - que tem esse tipo de comportamento, não é sábio. A idade não traz sabedoria. A vida se apresenta e optamos por aprender com ela ou simplesmente ignorá-la. Talvez a segunda opção tenha sido a do nosso protagonista. Nesse caso ele não é e nunca foi um sábio. Nem aos 5. Nem aos 30. Nem o será aos 100.

Eu estava louco para ser derrubado. Queria tanto poder me colocar naquela situação. Não pude. Não posso. Ser velho é lindo. Usar a velhice para destratar quem quer que seja é deplorável.



Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Julho/2008

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Crônica 8: O PEDESTRE

Meus maiores apreciadores e, talvez, os mais fiéis são os “politicamente incorretos” fumantes. Degustam seus cigarros, observam sua fumaça e em seguida convocam a mim, o cafezinho, apenas para complementar aquele pequeno momento de deleite e relaxamento.

Nesses momentos, em geral, sou direcionado às mesas da calçada. Adoro. Há tanto para se observar. A falta de educação dos motoristas é um exemplo. Buzina, carro furando o sinal vermelho, gente colocando a cabeça pra fora e gritando, xingando. Nossa. Como pode alguém conseguir relaxar ante a uma situação dantesca como essa?

Quem mais sofre são os pedestres. Sinceramente, não sei qual o problema com os motoristas. Uma faixa de pedestres. Um carro. Um transeunte. Um cruzamento. Não há semáforo. O cidadão – parado na calçada – aguarda o melhor momento para atravessar. Os carros passam como raios em dias de tempestade.

Quando o movimento diminui, ele olha para os dois lados. Zeloso. Vendo apenas um carro, ao longe, resolve arriscar-se. Mexe sua perna e dá seu primeiro passo. Quando, finalmente, coloca seu pé na faixa, o carro, antes longínquo, aproxima-se. Ignora a existência da faixa. Do cidadão. O pedestre se assusta.

O homem coloca a mão no coração. O carro pára. O motorista olha para trás, vê o sujeito transtornado, desce do carro, caminha estressadamente até ele.

- Escuta, você não olha para atravessar, não?!
- Eu? Aqui há uma faixa de pedestres... Comprou a carta, foi? – responde o homem incrédulo.
- Se eu vi o seu carro, o senhor também me viu... – continuou indignado
- Você está em São Paulo, não no interior. Aqui é o Brasil e não a Suíça. Acorda!

Xingaram-se.

O motorista limitou-se a olhar para o homem. Um olhar desdenhoso. Deu-lhe as costas e voltou para o seu carro. Seu templo. Provavelmente, continuou seu caminho – como tantos outros motoristas – passando pelas faixas sem vê-las. Cruzando sinais vermelhos. Enfim, agredindo a todos com sua ignorância.

A rua acalmou-se. Os fumantes – sentados nas mesas da calçada – perguntaram-se o que havia acontecido, observaram, comentaram e voltaram às suas vidas. Muitos concordaram com o motorista... E eu, um simples café, não pude falar. Alertar para a falta de cuidado existente entre os homens. Mostrar que uma cena dessas não pode ser corriqueira. Deve ser sempre refletida.


Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Julho/2008

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Crônica 7: O Vendedor de Balas

Uma criança de apenas cinco anos. Inofensiva. Certo? Seria se não estivesse vendendo balas nos cafés. Ao menos é isso que algumas pessoas imaginam ao ver um menino vindo até sua mesa oferecer balas. Muitos recolhem suas bolsas, carteiras, guardam os celulares e sequer olham para o rosto do pequeno ser humano. Parado. Na sua frente.

Ele veio chegando bem de mansinho. Já havia passado por ali e sabia que naquela mesa não venderia balas. Mas outra coisa chamou-lhe a atenção: o pequeno e peludo poodle. Sim. Naquela mesa havia um cachorro. Todas as crianças que passam pelo simpático cachorrinho ficam encantadas. Por que ele não ficaria?

Mas teve medo. Medo de se aproximar e ser rejeitado. Como, provavelmente, já havia acontecido. Saiu. Voltou com seu irmão mais velho. Esse tinha sete anos. Aos poucos os dois vendedores de balas chegaram perto da dona do cachorrinho. Que medo.

- Moça... – falaram inseguros e em coro.
- Sim?
- Podemos passar a mão nele?

Que susto. A jovem dona do cachorro disse “claro! Mas antes dêem a mãozinha para ela cheirar. Assim ela não avança em vocês”. O medo passou. A mulher era gentil. E ali ficaram os dois por mais ou menos meia hora. Sentaram no chão junto ao animalzinho e brincaram. Brincaram muito.

Neste ínterim, o casal da mesa ao lado tremia. A senhora estava morrendo de medo daqueles dois sentados ali, tão perto dela. Quanta realidade.

- Você está vendo a mesma coisa que eu, José?
- Estou. Depois que formos assaltados ela vai achar engraçado deixar esses “bandidinhos” brincarem com o seu pet – respondeu o marido cheio de si.

Bandidinhos? Por quê? Eram apenas dois meninos de cinco e sete anos brincando com um cachorro fofinho. Que mal pode haver nisso? Tudo bem, antes eles estavam vendo balas de mesa em mesa... São crianças exploradas por suas mães... Pelas injustiças... Não estudam, nem se alimentam direito... Ainda não entendi em que momento ofereceram perigo. Quando, onde como e porque se tornaram “bandidinhos”.

É isso. São vistos pela sociedade como futuros bandidos. Talvez o sejam um dia. Talvez não. Como qualquer criança, não podemos saber o que serão quando adultos. Que vida terão. O importante é que, nesse momento, são crianças. Apenas crianças. Gostam de brincar com cachorros mansinhos.

Durante aquela meia hora - para os dois pequenos, eterna – eram somente meninos felizes. Mesmo que só por meia hora.

Um café expresso muitas vezes tem muita dificuldade em entender o ser humano. O único abençoado com a capacidade de raciocínio. Será que alguém que raciocina – pensa – nega meia hora de alegria a dois pequenos de cílios compridos e olhinhos esbugalhados? Talvez eu fique indignado justamente por não poder raciocinar... Deve ser isso...


Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Julho/2008

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Crônica 6: Sobrancelhas

O inesperado. Tem coisa melhor que o inesperado? Eu, pessoalmente, acho que o fator surpresa é o que há demais especial no cotidiano dos seres humanos. Esse era um dia comum, um dia qualquer no cotidiano deles. Ao menos era o que eles imaginavam.

Estava frio. Era um momento especial para um café quentinho. Sentei-me junto aquele jovem. Um rapaz bonito, simpático, muito educado. Recebeu-me muito bem em sua mesa. Aqueceu suas mãos em minha xícara. Sentiu meu aroma. Pediu licença com a colherinha e mexeu o açúcar que havia acrescentado.

Quando terminou seu ritual de preparação, degustou-me. Pude perceber que ele aproveitou cada grão moído e coado. Cada nuance de meu sabor. Ele estava ali apenas para se aquecer em meus braços. Após o primeiro gole, olhou para o lado, observou as outras mesas e apenas relaxou de um dia exaustivo. Quieto. Sozinho.

Ela estava sentada bem ali. Numa mesa muito próxima. Estava tranqüila. Traindo-me, Tomava um chá e lia um livro. Sua tranqüilidade intrigou-lhe. Deixou nosso apreciador de café curioso. Quis saber o que havia naquele livro que fazia com que ela deixasse o mundo a seu redor e mergulhasse naquele outro ambiente. O ambiente da imaginação. Da fantasia.

Fixou seu olhar naquela moça. Comum. Mas atraente, justamente por seu distanciamento da realidade. Ela notou. Ao levantar seus olhos do livro – e lembrar-se de onde estava – a moça encontrou-se com duas grossas sobrancelhas fixadas nela. Degustando-a. Apreciando-a.

Sorriu. Ela adorou a sensação de ser observada. Ser lida. Era como se ele estivesse decifrando sua alma. Ela gelou. De repente, não conseguiu mais se afastar do ambiente real. Não podia distrair-se daquelas sobrancelhas. Ele precisava conhecê-la. Fez um leve gesto com a cabeça e silenciosamente cumprimentou-a. A leitora, por sua vez, respondeu seu gesto com um largo sorriso.

Quando dei por mim, já estava nas mãos do homem, viajando até a mesa da frente e sendo colocado, cuidadosamente, ao lado de um livro. Poesias. As grossas sobrancelhas e o lindo sorriso conversaram por horas. Um instante. Uma eternidade. Mas até a eternidade de um momento de descobertas – de desvendamento – acaba.

Tiveram um fim de tarde mágico. Reconheceram-se no outro. Os dois se levantaram juntos. Foram embora. Talvez se encontrassem mais tarde. Talvez se vissem outro dia. Talvez se casem, tenham filhos. Mas, o mais provável é que não se vejam mais. Que esse momento fique na memória deles. Preservado com carinho. E aquela sobrancelha e aquele sorriso jamais se separem e jamais vivam outra eternidade como essa. Essa é a maravilha da surpresa: ela não se repete. Caso contrário, deixa de ser surpresa.


Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Julho/2008

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Crônica 5: Colcha de Retalhos

Domingo, fim de tarde. Foi um dia gostoso aquele. Nem quente, nem frio. Domingo é um dia estranho, é um dia que praticamente não existe. Digo isso porque nas conversas que ouço aos domingos todo mundo está – invariavelmente – reclamando do dia seguinte, ou seja, da segunda-feira. Será que o domingo é tão somente o dia anterior à segunda?

Fato é que neste domingo específico duas amigas de longa data resolveram se encontrar para colocar a conversa em dia. Muito jovens as duas, conseqüentemente, com muita história pra contar. Eu ainda estava no balcão, esperando a próxima bandeja chegar e já ouvia as risadas das duas. Logo pensei: “que delícia uma mesa cheia de novidades”.

Uma das moças falava alto. Muito alto mesmo. A outra permanecia muda. Estranhei aquilo. Acontece que a menina falante não falava com sua amiga, a que estava sentada à sua frente, ela falava com alguém que não estava lá. Com alguém que estava do outro lado de um pequeno aparelho: o celular.

Aliás, que negocinho incômodo. Quando ele chama, normalmente vibra e – para mim – aquilo parece um terremoto. Chego a ficar tonto. Todo sacudido. Não gosto mesmo. Mas quem não estava gostando nada dessa história era a amiga preterida.

Cada vez que ela tentava abrir a boca para falar algo vinha aquela música ensurdecedora de cima da mesa. E a outra não tinha a menor dúvida: atendia.

- Oi Cris! Claro que posso. Fala...

Depois desse “fala” geralmente seguiam-se uns dez minutos de conversa fiada...


- Ah... Não posso não... É... “Too Much” pra mim... “Too Much”... Não insista!

Sem brincadeira, esse bendito celular tocou umas oito vezes e todas as vezes foi atendido. Quando ele parou de tocar eu pensei que a amiga silenciosa iria, finalmente, conseguir falar o que tanto queria.

- Espera só mais um minutinho. Preciso ligar pro Clau... – soltou a dona do incansável celular.

A outra apenas aceitou e meneou a cabeça em sinal afirmativo.

- Oi Clau! Então, não irei hoje... “Too Much”... Pois é! Eu? Nada... Estou tomando um café... Com ninguém, ué! Estou sozinha!

Ao ouvir a última frase, a amiga que até então estava esperando pacientemente, me saboreando, curtindo o fim de tarde e pensando nos problemas de segunda, se assustou. Olhou para a amiga sem acreditar no que acabara de ouvir e fez um gesto com as mãos. Como se dissesse: eu sou ninguém?

A outra percebendo o descontentamento da amiga e sentindo-se extremamente incomodada com a situação, desligou o telefone – pela primeira vez – e permaneceu alguns segundos sem reação. Mas foi rápido. Levantou-se. Colocou sua bolsa no ombro. Pegou o molho de chaves que estava sobre a mesa. Deu seu último gole em mim, já em pé, e a única coisa que conseguiu dizer, foi:

- Lets?

Foi tudo “too much” para um velho café. Let`s?


Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Julho/2008