quarta-feira, 23 de julho de 2008

Crônica 11: A DISCUSSÃO

Quando ele chegou eu já estava na mesa. Muito acomodado. Sentindo o perfume da tarde, de uma seca tarde de sábado em São Paulo. Sua companheira de mesa já havia solicitado ao garçom dois drinks. Agora sou chamado de drink. Perde um pouco da essência. É verdade. Mas sofistica. Cheguei gelado. Eles me queriam assim. E eu... Eu sou como você desejar.

Um rapaz não muito alto acomodou-se na cadeira. Senti seu corpo entregar-se ao assento e relaxar por completo. A moça – aquela que havia me chamado – conversava com ele sem parar. Mas ele nada falava. Apenas olhava atentamente para os lábios de sua interlocutora.

Imaginei que ela estivesse falando ao celular. Não estava. Aliás, o celular estava colocado bem próximo a mim. Pronto para me proporcionar um terrível terremoto com suas vibrações insuportáveis. Continuei invocado. Isso não existe. Ela fazia perguntas e ele só olhava para seus lábios. Nem um som.

Estranhei. De repente fui derrubado. O que acontece com essa gente? Pensei. Eu não sabia. Havia sido derrubado por sua fala histérica. Intriguei-me. O cardápio fora solicitado. Ele deitou o livreto na mesa e leu-o. Ele era o que costumam chamar de um portador de necessidades especiais. Sendo menos politicamente correto e mais objetivo: era surdo e era mudo.

Nesse exato momento entendi. Sua ausência de fala e sua fixação nos lábios da amiga, nada tinham de paquera ou timidez. A expressão era outra. A via era outra. Mas a linguagem existia. E, no caso, a irritação também. Apesar de não saber o que dizia, senti na força de seu corpo a indignação ante a situação apresentada pela amiga. Indignação essa “dita” através de gestos fortes e intensos e um significativo balé de mãos e braços. Em todas as direções.

E a discussão foi esquentando. Seu olhar cada vez mais preso aos lábios dela. O corpo cada vez mais solto. Mais enérgico. Ela parou de falar. Baixou a cabeça. Parando de movimentar seus lábios. Impediu o acesso às suas idéias. Respirou. Pousou sua mão no braço insano do rapaz. Tão leve quanto um pássaro em seu galho. Sugeriu silêncio.

O silêncio veio. Ele parou de se movimentar. O silêncio veio. Olhou-a diretamente nos olhos. Abraçou-a. Calma. E enquanto se abraçavam com ternura deitou-lhe os pensamentos nos ombros. O tato. O poder do corpo. A expressão. O toque. Ouvir, falar, são importantes, mas podem ser realizados de formas outras. Sem a voz. Sem o som. E assim mesmo estrondar. Ecoar. Ele era realmente especialíssimo, pois sabia comunicar. E soube exatamente a hora de parar.



Mariana Primi Haas - MTB 47229 
Julho/2008

5 comentários:

Anônimo disse...

Ahhhh o tato... que poder! Uma das minhas fantasias é transar com um portador de deficência visual pra aproveitar desse tão necessário sentido.

Anônimo disse...

Esse café deve viajar n curta do Paris Je Taime...o amor do cego e uma atriz de teatro..um roteiro lindo http://www.youtube.com/watch?v=v0XZxYDQ5z8&feature=related

Anônimo disse...

Adorei.A importância do toque, do olhar, do gesto tudo isso faz parte do amor. Parabéns!

Anônimo disse...

Mariana, Gostei muito deste café. Num mundo onde as pessoas não se olham, sentem; tocam; compreendem.... é preciso que hajam muitos cafés como este. com carinho e sinceridade Carmem.

Anônimo disse...

O que será que discutiam... conversavam... combinavam...será que rolou?