segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Crônica 89 - Entre Seguranças, Incertezas e Ironias




 
Aquela era uma mesa animada. Cheia de gente. Todos jovens. Cheguei ao final da conversa. Junto com a conta. Quem me chamou foi um rapaz muito bonito que conversa com outro nem tão bonito assim. Mas tinha lá seu charme. O assunto era orientações sexuais.

- Nunca entendi por que alguns caras não aceitam ter amigos gays. Eu tenho um monte e gosto de mulher. Isso não me incomoda em nada... - Dizia o mais garboso dos amigos.

- Também nunca entendi.

- Deve ser insegurança... Só pode...

- Ah é. Eu mesmo sou tão seguro da minha orientação que não tenho medo nenhum. Tenho amigos gays, heteros e tudo bem. Gosto dessa diversidade.

- É assim que tem que ser. Só assim para entender o mundo de forma mais completa.

- Sou tão seguro que até já fiquei com outros homens, sabe? E nada mudou pra mim. Continuo heterossexual como sempre fui!

Ooops... Momento de silêncio. Nosso amigo mais bonito ficou um pouco confuso. Não sabia muito bem o que dizer. O rapaz passou as mãos nos cabelos. Olhou pro seu interlocutor. Deu gole em mim. Como se procurasse uma inspiração. Devolveu-me ao pires, minha zona de conforto. E em seguida disse com um leve sorriso de canto de boca.

- É, amigo, isso que é segurança...!

Conta paga. Todos levantaram. Foram embora. E eu fiquei. Dei uma irônica risada de café. Meu amigo querido e companheiro, talvez você não conheça minha risada. Mas acredite, ela existe. O que dizer? Esse cafezinho ouve cada uma...
 
 Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        
 Dez2013
 

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Crônica 88 - Entre bochechas rosadas e línguas de fora


Não sei se comentei. Mas, agora há no meu café um espaço dedicado aos cachorros. Fica do lado de fora do café. Assim, além de se sentar à mesa com seu pet, o cliente também pode sentar em uma das poltronas espalhadas sobre um amplo gramado e deixar seu bichinho solto. E é claro eu também sou servido lá. Até porque, é um espaço aberto onde fumar é permitido. Faço o maior sucesso. Eu e o cigarro somos amigos de longa data, vocês sabem, né?

Nesse dia, eu estava lá tranquilo. Fui convidado por uma grande amiga. Frequentadora antiga. O cãozinho dela é um pouco hiperativo. Já me derrubou algumas vezes com o seu agitado rabinho. Mas é um fofo. Parece de pelúcia.

Estávamos lá, sossegados, quando de repente entra um bebê. Tinha pouco mais de 2 anos. Ele vinha segurando no dedo da mãe. Um pouco cambaleante pela inexperiência em andar. Muito risonho. Dava aquelas risadas que só os bebês têm. Na sua camiseta lia-se: "Eu amo meu cachorro e o seu também".

Houve uma aproximação delicada. O cão e o bebê tinham mais ou menos a mesma altura. O que encantou ainda mais a criança. Fiquei com medo. Sabe como é criança. Pra fazer carinho elas batem. Puxam o rabo. A orelha. Mas nem a mãe, nem a dona estavam preocupadas.

E foi incrível. Foi tanto rabo. Tanta mão. Tanta lambida. Tanto beijo. Já não se distinguia mais quem era a criança e quem era o cachorro. Rolaram no chão até ficarem exaustos. Deitaram ali mesmo. Na grama. Deitaram com cumplicidade.

Cada um com a cabeça para um lado. Mantiveram patinhas e pezinhos encostados. A mãe e a dona tiraram fotos e mais fotos. Um com bochechinhas rosadas. O outro de língua de fora. Os dois igualmente felizes e... Cansados.

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        
 Dez2013

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Crônica 87 - Entre gravatas vermelhas e uma opinião

Mais um dia começa. E o meu pessoal começa a chegar. Limpa. Cozinha. Arruma. Na cozinha o radinho de pilha está sempre ligado em alguma estação AM. Ouço notícias. Desgraças. Histórias. Previsão do Tempo.
Logo chegam meus primeiros clientes. Dois amigos. Dignamente arrumados. Terno preto. Gravata vermelha. Cabelos engomados. Sapatos envernizados. Suspeito que seja algum tipo de uniforme.
Todos os dias, às 8 horas em ponto, eles sentam em uma mesa quadrada. Sempre a mesma. Como num balé, colocam as pastas brilhantes na cadeira vazia. Abrem as pastas. Retiram os celulares. Checam notícias. Emails. Redes sociais. E, finalmente, colocam os aparelhos sobre a mesa. Já disse em outras oportunidades que não gosto destes aparelhinhos. Me incomodam. Vibram. São chatos.
O rapaz mais magro estende a mão para o alto. Estala os dedos e o garçom já sabe o que eles desejam. Um café, um suco de laranja e dois pães com manteiga na chapa. Enquanto me arrumo na bandeja, ainda sonolento e preguiçoso os dois iniciam uma tímida conversa. Insossa e sem graça. O chamado papo de elevador.
Invariavelmente, o primeiro tema abordado é o tempo. Por incrível que pareça o rapaz mais rechonchudo sempre reclama. "Nossa, hoje tá muito quente" ou "Credo, que frio é esse?" ou ainda "Esse tempo ameno? Não se sabe se está frio ou calor, não gosto".
O magrinho apenas ouve. Concorda com tudo. O próximo assunto é o café. Sim, eu mesmo. Tem gente muito cara de pau. E o gordinho é um desses, sempre reclamando de mim. "Está me queimando de tão quente". "Mas o que é isso? Veio gelado". "Pouco leite". "Muito leite". E por aí vai.
- O pão está bom? - pergunta o nosso esguio e calado amigo.
- Sim. Podia ter mais manteiga. Está um pouco seco. Mas dá pra comer.
- Hum... Que bom - responde o outro virando um pouco os olhos e soltando um discretíssimo suspiro.
Por último há sempre uma piada sem graça. Da qual o magrinho ri muito e o gorduchinho acredita que é bom em anedotas. Nesse dia o mais silencioso dos dois resolve falar:
- Nossa, Renato, estou tão cansado hoje. Acho que dormi mal. Sabe quando você já acorda cansado? Vai ser um dia daqueles, nem começou e eu já quero que termine.

- Credo Álvaro! Vai procurar um psicólogo, cara! Você reclama demais! Não dá pra apenas agradecer o trabalho que tem? Eu, hein?

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        
 Dez2013

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Crônica 86 - Sobre Projetos, Vidas e Diferenças




Chegou. Correndo. Colocou suas coisas em cima da mesa. Fez sinal para o garçom. E disparou para o banheiro. Eu cheguei com a mesa ainda vazia. Aquilo me deu uma curiosidade... Enfim, esperei que voltasse do banheiro para que pudesse conhecer meu novo interlocutor. Voltou. Tinha cabelos compridos. Batom nos lábios. Brincos enormes. E um óculos de sol,  grande e quadrado. Imediatamente pensei: "uma mulher". Suas mãos se aproximaram de mim. Unhas longas e pintadas de azul-céu. Muitos anéis nos dedos.


Sabe, além de bocas, eu também conheço bem as mãos. Minha xícara e as mãos são intimas. Eu sei muito de uma pessoa só pela forma de segurar minha xícara. E, dessa vez, senti algo diferente quando ela pegou delicadamente na minha asinha. A pele dessa mão era grossa. Não correspondia às suas características visuais. Eram mãos ásperas.


Mas vai saber, ela podia ter um ofício que exigisse muito de suas mãos. Talvez não cuidasse delas. De qualquer forma era diferente. Estávamos em silêncio. Ela me ergueu do pires. E foi lentamente levando-me à sua boca. Nesse caminho consigo saber muito mais sobre meus queridos companheiros. Vi que ela não tinha seios. Sua pele do rosto era mais grossa e havia abusado da base na maquiagem. Quando cheguei à sua boca vermelha tive certeza: Não era uma mulher.


Interessante. O inusitado também acontece comigo. Engraçado como o ser humano é complexo. Nós cafés somos apenas cafés. Homens e mulheres não. Vocês nascem como um projeto inacabado. No entanto, o próprio ser humano não consegue entender isso. Muitos olharam. Comentaram. Fizeram piada. E ela lá. Firme. Tomou seu café tranquilamente. Pagou. Pegou sua bolsa Chanel e foi embora.

E deixou, para quem ficou, um delicioso perfume no ar e uma xícara imensa repleta de algo chamado reflexão. Sim. Nos deixou refletindo sobre as novas configurações. Sobre as novas formas de ser. Existir. As novas formas de se mostrar ao mundo. Sem medo de ser diferente. Desejando apenas ser humano.

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        
 Nov/2013

domingo, 3 de novembro de 2013

Crônica 85 - Sobre Beagles, Ídolos e Moda


Era um lindo domingo de sol. Ela chegou com sua cadelinha. As duas já são minhas conhecidas. Eu já sei que Ela tem todo um ritual a cumprir antes de sentar. Primeiro passo, colocar a bolsa sobre a mesa. Segundo passo, amarrar a cadelinha à sua cadeira. Terceiro passo sentar. É nesse ponto que ela se vira, chama a garçonete e diz: "um cafezinho, por favor... Ah! Você pode trazer um pouco de água para a minha cachorrinha? Obrigada!". É nesse ponto que eu entro.

Tudo tranquilo até aqui. Cheguei quentinho. Sentei-me junto a elas. Minha amiga estava bem. Mas um tanto quanto tristonha. Pelo que entendi teve um bom final de semana. Mas a vida não é sempre o que queremos ou planejamos. E ela é o tipo de pessoa que faz e cumpre seus planos. No entanto, dessa vez não deu.

Estava lá. Sentada. Bebericando-me aos poucos. Usufruindo do nosso momento. Aproveitando sua própria companhia. Olhava para as unhas, que haviam sido feitas um dia antes, e pensava: "Estão ótimas! Mas na terça tenho um compromisso... Talvez estraguem até lá...". Passava as mãos no cabelo. Olhava para os transeuntes.

Mas toda esta paz durou muito pouco. Sua cachorrinha. Que sempre fora apenas sua companheira. Esta semana deixou de ser apenas mais um cachorro nas ruas. Tornou-se especial. É um Beagle. E todo aquele instante de reflexão e bobeiras foi por água abaixo.

"Olha lá, um Beagle!", disse uma menina para o namorado. "Papai! Um Beagle", gritou um garotinho esfuziante. E assim foi. As mais diferentes pessoas. Nas mais diferentes idades. Todos gritavam. Apontavam. Meu Deus pensou minha companheira, mais um pouco vão pedir autógrafo. Af...!

Mas até então ela conseguia lidar. Começou a ignorar o assédio. Seguiu em seus pensamentos. Fazendo carinho em seu Beagle e se deleitando com seu segundo Cafezinho. Até que de repente se aproximou da mesa um casal. Os dois com mais ou menos 60 anos. E eles queriam conversar. "Gente, o que é isso que estão fazendo? Você viu? Chorou muito? Você ficou triste? Fico imaginando a dor que deve ter sido...

E nesse tom seguiram-se diversas perguntas. Ela não teve nem tempo de responder. Quando viu a senhora já contava sobre o câncer de uma amiga. Depois algo sobre colocar óleo no ouvido. Enfim. Distraímos-nos nesse ponto. Mas eles não foram os únicos. Um pai com uma criança. Uma família inteira. Mais idosos. E por ai vai. Todos com as mesmas perguntas.

Era como se quisessem ver o sofrimento alheio. Se quisessem fazê-la sentir-se culpada. Era uma forma questioná-la. "É claro que você ficou arrasada". Bom, se ainda não estava, esse era o momento de ficar. Este caso do Instituto Royal é realmente terrível. Mas ela já sabia. E, obviamente, sofria por eles. Mas fez o que podia. Talvez ainda não estivesse com tudo esclarecido na sua cabeça. Vai saber.

Ela não podia mais suportar aquele falatório. Era muita pressão. Talvez nem a cachorrinha estivesse aguentando. Que pressão. Só faltou alguém se sentar junto a ela na mesa. Mas isso não aconteceria. Ela não permitiria. Parecia que estavam diante de algo que nunca viram. O Beagle virou um ídolo.

Ninguém se preocupou se estava incomodando. Se ela esperava alguém. Se ela estava no telefone. Todos queriam e se preocupam apenas em estar perto de um Beagle. É triste que situação como as do Instituto Royal aconteçam. Mais triste que tantos animais sofram maus tratos. Mas os beagles são cachorros. Não são ídolos. São animais que merecem ser respeitados como qualquer outro. Este é um caso sério. Não pode virar moda.

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        
Nov/2013

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Crônica 84 - A Velha e Suas Sacolas


Essa vida de Cafezinho é mesmo muito maluca. Já encontrei de tudo um pouco aqui nessas mesas. Já falei sobre pais e seus filhos. Casais em seus momentos românticos. Brigas das mais variadas. Encontros e desencontros. Crianças. Até sobre cachorros eu já conversei com vocês.
Mas tem uma amiga minha sobre a qual ainda não comentei. Sei pouco sobre ela. A única informação que tenho é que ela mora perto de mim, em um espaço minúsculo. Ela mora em um vão entre duas paredes. Fica ali quieta. Não incomoda ninguém.

Está sempre maltrapilha e carrega consigo várias sacolas. Apesar de viver em situação de rua, mantém certa dignidade. Suas roupas são limpas. E seus hábitos bastante refinados. Uma vez por semana, pelo menos, ela vem até minha casa. Senta. Espera ser atendida. E pede seu Cafezinho.

É uma daquelas companhias silenciosas. Em seus olhos vagos há um brilho que insiste em ser apagado pela vida. Mas ela não deixa. Suas mãos não são como as mãos com as quais estou acostumado. Não são mãos macias, com unhas pintadas. São mãos vividas. Digo isso não só pela idade dela, já um tanto avançada. Mas, sim, pelos calos. Pela aspereza. E contraditoriamente pela delicadeza. Pela suavidade.

É uma mulher gentil. Delicada. Atendê-la me proporciona prazer. Ela sorve cada gole como se fôssemos somente nós dois no mundo. Como se meu líquido fosse, literalmente, o "ouro negro". Negro como ela. Assume uma postura ereta. Pernas cruzadas. É "o" momento da semana dela. Faz-me sentir importante. Feliz.

Mantém sempre o olhar distante. Como se buscasse na multidão algum tipo de reconhecimento. Ela não precisa se auto afirmar. No entanto, acredito que goste de ser reconhecida como a dama que é. Por isso faz questão de se sentar comigo. Em minha casa.

Muito diferente de outras pessoas em situação de rua que passam aqui, pedem um Cafezinho e saem andando. Ela quer ser atendida. Valoriza nossa intimidade. Na hora de ir embora faz um aceno extremamente respeitoso ao garçom (coisa que nem todo mundo sabe fazer... diga-se de passagem). Pede sua conta. Paga. Levanta-se e segue seu rumo. Volta para o seu buraco. Ela e suas sacolas.

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Agosto/2013

sábado, 27 de julho de 2013

Crônica 83 - O Café e o Zíper


Era mais um dia típico dessa grande cidade: um pouco de sol, um pouco de chuva e, por fim, muito frio.  E, como sempre em dias assim, minha casa fica cheia. Bem cheia. Chega mesmo a ter fila de espera na porta. Quando isso acontece me sinto lisonjeado. Tanta gente assim querendo passar algum tempo comigo...

No fim do dia, com aquela garoa fina caindo, as pessoas iam chegando, em geral com as mãos cheias. Atrapalhadas. E eram bolsas. Carteiras. Cartões. Tudo caindo. Casacos e guarda-chuvas também faziam parte do cenário. O clima era de ansiedade. E, por incrível que pareça, todos estão ali me procurando para... Relaxar.

Pois é. E nesse "caos" tão nosso, ele se sentou. Convidou-me a acompanhá-lo.  Colocou seu note e seu celular sobre a mesa - companhias que eu detesto - e concentrou-se. Ficamos sem nos comunicar por uns 15 minutos. Nem um gole sequer. Até que... Quando ele resolveu degustar-me... em um gesto desajeitado... derrubou minha xícara.

Ai! Foi uma cachoeira de café. Escorri pela mesa e caí no seu colo. Nesse momento, percebi que meu amigo estava com o zíper aberto. E agora? O que fazer? Eu ouço todos. Chego até seus pensamentos. Sentimentos. Mas ainda não consigo falar com eles (só com a minha interlocutora).

Sendo assim, aquela situação me deixou um pouco desconfortável. De qualquer forma, tentei abstrair. Olhei para o teto. Para a mesa ao lado. Para duas crianças que brincavam no salão, e torcia para que ele não se levantasse. Foi nesse momento que chegou um conhecido do rapaz e ele precisou se erguer. Que nervoso.

Fui de volta para o balcão. Quando cheguei lá tive uma idéia maravilhosa. Me sacudi daqui. Mexi dali e Voilá! Consegui desenhar algo parecido com um zíper na minha superfície. Quando voltei à mesa meu amigo já havia se sentado. Digitava no seu computador. Olhava seu celular. E demorou demais para me ver ao seu lado. Quando foi dar seu primeiro gole... Meu desenho tão duramente trabalhado já havia sumido.

E o tempo passou. Ele recebeu uma ligação que pareceu bastante importante. Levantou-se e foi embora. E o zíper? Bem, o zíper continuou aberto. E eu continuei na mesa. Paciência. Eu bem que tentei. E lá foi ele. Quando chegou na esquina, pude ver que outro rapaz avisou-o do incidente. Que alívio!

De qualquer forma, fica a dica: da próxima vez que for tomar seu cafezinho, olhe para ele com atenção. Talvez ele queira te dizer algo...

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Julho/2013

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Crônica 82: Sobre Guardanapos, Vinagre e Rebanhos


Minha casa - sempre tão tranquila e acolhedora - nesse dia era apenas acolhedora. O som ambiente, normalmente composto por conversas animadas e música ambiente, virou um amontoado de palavras descoordenadas. Bombas. Tiros. Gritos de horror.

Lá dentro havia um pouco de tudo. Um microcosmo do mundo exterior. A televisão estava ligada num desses programas "mundo cão". O apresentador vibrava com cada investida policial. Cada um que entrava trazia alguma novidade. Novidade essa que sempre ia na contramão das trazidas pelo tal programa.

Estávamos lá. Apavorados. Assistindo a nossa esquina pela TV. Sem poder colocar a cabeça para fora da janela. Nesse momento, uma conhecida minha de alguns anos, entra. Nervosa. Com o coração aos pulos. Trazia consigo, além da bolsa, cadernos e diversos outros materiais de trabalho nos braços. Ela mora lá perto de mim. Tentava chegar em casa quando a cavalaria da Polícia Militar avançou para cima dela e algumas outras pessoas. Detalhe: eles estavam na calçada e tentavam apenas atravessar a rua. "teve gente que fugiu. Gente que subiu nos canteiros. Eu vim pra cá".

Em seguida entra uma outra amiga minha de muito tempo. Nervosa. Com medo. "Vocês não acreditam no que eu vi: os próprios policiais colocavam fogo no lixo formando barricadas! E ainda empurravam com o pé, para que pegasse fogo mais rápido!"

Por fim, alguns manifestantes entraram na minha casa. Começaram a falar sem parar sobre o que estava acontecendo. Os amigos que apanharam. Outros que passaram mal. Outros que foram presos. Minutos depois, três bombas de gás lacrimogêneo foram jogadas na porta. O gás invadiu minha casa. Por baixo da porta. E foi guardanapo e vinagre para todo lado.

O caos estava posto. O cenário era de guerra. Para mim lembrava uma daquelas cenas de bombardeio que sempre vemos em filmes sobre a segunda guerra mundial. Ou, para dar um exemplo mais tupiniquim, aqueles famosos tumultos entre militares e militantes em 1968. O dia foi digno do mais tenso filme de terror. E tudo isso, apenas por uma reivindicação... Tudo isso porque as pessoas cansaram de ser bons cordeiros desse rebanho brasileiro falido. Tudo isso pela não aceitação do aumento na tarifa dos ônibus. Será mesmo,  por isso?

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Junho/2013

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Crônica 81 - Sobre Dores, Sorrisos e Explosões


Ele estava prestes a explodir. E o mais interessante disso é que ninguém sabia. Mesmo eu. Tão próximo dele. Seu Cafezinho confidente. Pelo menos uma vez por semana ele vinha me ver. Às vezes sozinho. Às vezes com amigos. Às vezes com seu lindo cachorro. Era um homem jovem. Bonito. Comunicativo. Sua marca registrada era o belo sorriso.

Vira e mexe, enquanto estávamos "conversando”, éramos interrompidos pelo chato celular. E eu o ouvia dizer: "comigo tudo ótimo! E você como está?". E o ouvia continuar a conversa alegremente. Mas, ao desligar e voltar-se para mim, eu percebia a tristeza no fundo de seus olhos. Percebia o desencanto no canto de seu sorriso. Tão lindo.

Ele não estava bem. Era nítido. Mas... Será que era tão nítido assim, só pra mim? Será que os outros preferiam acreditar nas palavras superficiais dele? Nas tintas de cor forte que ele usava para esconder os tons de cinza em que realmente se apresentava sua vida?

O ser humano é mesmo racional apenas quando interessa. A solidariedade passa longe. Mesmo grandes amigos, quando se encontram, invariavelmente, perguntam: "Como vai?". E a resposta é, invariavelmente, "Tudo ótimo!". Pronto. Todos acreditam e se dão por felizes. Mesmo quando sabem que não pode ser verdade.

Seu amigo está desempregado e diz: "Estou ótimo!".  E você acredita. Sua amiga terminou com um casamento e diz: "Estou ótima!". E você opta por acreditar. Você não fala com uma pessoa querida por meses, quando resolve procurá-lo diz: "sinto muito, a vida anda corrida. Você está chateado?", e ele por sua vez diz: "claro que não. Imagine.". E você... Acredita.

E por ai vai. É bem mais fácil acreditar. Poupa-lhes providências. Poupa-lhes ajuda. A tristeza, tão comum à vida de qualquer ser humano, às vezes são como mendigos. Passam por eles. Pulam os indivíduos na calçada e fingem que não viram. Ou não veem mesmo.

Nosso amigo estava assim. Ótimo. E todos acreditaram. Pularam por cima dele. E aceitaram que estava ótimo. Mesmo sabendo das dificuldades que enfrentava. Mesmo sabendo que mesmo passando por uma má fase ajudaria quem precisasse. Mesmo sabendo.

Sim. Porque ele não falava. Mas todos sabiam. Meu querido companheiro. Fechara o sorriso por um instante. Estava com os olhos cheinhos de lágrimas. Tinhas as mãos trêmulas. Estava com medo. E encontrava em mim alguém que poderia compreender suas tristezas sem questioná-lo. Isso já era uma ajuda. Ele tinha vontade de gritar. Muito. E alto. Mas não podia. Tinha uma aparência. Caso gritasse, talvez, fizesse com que percebessem sua dor. Ele não sabia como os outros reagiriam. Não sabia como reagiriam às suas próprias dores...
Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Junho/2013

domingo, 26 de maio de 2013

Crônica 80 - Sobre o Humano, o Constrangimento e o Cafezinho

Eu, diferente de Judith Rossner que ia "De Bar em Bar", perambulo de mesa em mesa tentando entender um pouquinho desse bicho tão racionalmente irracional que é o ser humano. Saio da minha cozinha e vou de carona nas mãos de um garçom me equilibrando sobre a bandeja (só eu sei como isso pode ser desagradável).

E quando chego na mesa, preciso dividir a atenção com muita "gente" ao meu redor. Sim, houve um tempo em que eu era a estrela. Hoje, talvez nem seja notado. É tablet, celular, notebook, netbook.
Eu sou sorvido, na maioria das vezes, sem sequer ser olhado. Me sinto meio estranho. Parece que se fosse eu ou uma insossa xícara de chá daria na mesma. Sou aquela companhia invisível. Me sinto uma desculpa. É como se fosse apenas um motivo para estar ali.

Por vezes chega a ser constrangedor. Contudo, sou capaz de tirar proveito de situações assim. Como? Observo mais ainda. É quase uma vingança inofensiva e imperceptível a olhos pouco cuidadosos. Você não me vê, mas eu te vejo. Você não me percebe. Não quer me entender. Mas eu te sinto por inteiro. Te olho sem você nem imaginar estar sendo olhado. Consigo entender sua vida inteira e de mim você tem apenas um gole.

Você, caro amigo, vai embora sem se despedir. Às vezes me deixa lá solitário na mesa. Mas vai com o meu gosto na boca e a minha imagem na lembrança. Eu, por minha vez, saio logo dali e vou para a próxima mesa. Escrevo sobre você. Rio. Em algumas situações choro. Mas escrevo sobre casos. O seu e o de outros.

Assim, não tenho mais amigos fiéis. Aqueles que voltam sempre pra me ver. Tenho apenas encontros esporádicos. Em alguns sou feliz. Em outros nem tanto. O mais interessante disso é o quanto algumas pessoas gostam de me exibir como símbolo de tranquilidade. Segurança. Felicidade.

Muitas vezes estão ali sentados. Tristes. Cabisbaixos. Mas tiram o celular do bolso. Montam uma mesa interessante e escrevem: "tarde tranquila" ou "como é bom tomar café com os amigos" ou qualquer coisa do gênero. E postam nas chatas redes sociais. Me usam. Mas continuam sem  me ver. Talvez não se enxerguem também. Não os culpo. A mim já não importa.

O que importa é o que eu sei. É o que eu sou. E eu sou o seu Cafezinho. E estarei aqui. Sempre. No mesmo lugar. E, você, meu caro, sabe onde me encontrar quando precisar de silêncio. Me veja ou não. Me fotografe ou não. Meu único desejo é que quando estiver comigo, esteja. Seja capaz de me sentir. Mas cuidado. Como disse Ana Carolina em uma de suas músicas, "eu também sou feito de deixar de ser". E no meu caso... Bom, no meu caso o que posso fazer é chegar frio. Gelado. Irreconhecível até você.

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Maio/2013

domingo, 28 de abril de 2013

Crônica 79: Sobre Compras, Vidas e Opções


Estranho como no momento em que as pessoas se sentam junto a mim eu não sei nada sobre elas. Ao mesmo tempo consigo me sentir tão próximo. Claro, eu sou um Cafezinho. Frequento suas mãos e suas bocas. Mais do que isso. Frequento seus pensamentos. Em alguns casos faço deles minha morada.

Tenho amigos dos mais variados. Com os problemas mais improváveis. Com as histórias mais loucas. E as mais normais. Cotidianas. Sim, porque a normalidade não é necessariamente o contraponto da insensatez. As duas podem andar de mãos dadas, não acham?

Um assunto bem genérico o meu hoje. Mas foi levantado por comentários que andei ouvindo nas minhas mesas. Julgamentos e pré julgamentos. Sentaram-se duas lojistas na minha mesa. Trabalhavam como vendedoras. Vez por outra nos horários de descanso vinham até minhas mesas e sentavam para colocar o assunto em dia.

E o assunto, claro, eram as freguesas. Deviam ter seus 38 anos. No máximo. Chegaram. Acenaram para o garçom e começaram a falar. "Menina, você viu a mulher que entrou na loja?", perguntou uma. "Vi sim, simpática, né?". Inconformada a outra respondeu: "estou falando daquela que entrou com a filha e a 'amiga' da filha".

"Vi. Achei super legal ela levar a filha e a 'amiga' para fazerem compras".  "Legal? Como assim? As meninas tinham uns 17 anos. Como poderiam saber o que querem para a vida delas? Ah! Sei não. Na minha época se aparecesse com uma 'amiga' dessas em casa... E Deus? Não pensam em Deus?"

"O importante é que compraram bem e garantiram nossa comissão. Deixa elas... Deixa Deus no canto dele..." , disse a outra. Impressionada com a postura da amiga, a primeira continuou... "Sabe lá o que vai ser do mundo se as coisas continuarem assim. É homem com homem. Mulher com mulher... Me dá até medo... E agora, ainda querem casar... Afffff!"

A colega, já enfadada daquela conversa... "Deixa cada um com quem quer. Você não quer 'amigas', quer? Então pronto. Mas para nós vendedoras é ótimo! Mulher compra mais. Presenteia mais e a gente ganha mais no fim do mês. ".

"Tá na hora, vamos?". E foram. E eu fiquei ali pela metade.Pensando. Por que será que as pessoas se incomodam tanto assim? Vivemos ou não em um estado laico de direitos? Não estou aqui defendendo, nem culpando. Que coisa mais chata. Viva e deixe viver é o que eu diria se pudesse... Mas, não podia... Enfim... Ouço de tudo. Em 2013 ouvindo um papo desses... Coisa démodé....

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Abril/2013

domingo, 21 de abril de 2013

Crônica 78 - Sobre Crianças, Pipoca e Futuro


Dia ensolarado. Tarde feliz. Em dias assim a cidade se torna quase um parque de diversões. É mãe passeando com filho. É cachorro brincando com os donos. Idosos caminhando. Incrível como o sol tira de todos seus melhores sorrisos. É como se houvesse uma promessa velada de dias melhores.

Enfim, filosofias baratas de um Cafezinho ... Sentou-se  em minha companhia uma jovem de seus vinte e poucos anos. Uma carinha simpática. Mas um tanto maltratada para tão pouca idade. Com ela seu filho, e sua sobrinha. Os dois com cinco anos. No máximo.

Sentaram. Demorou um pouco, mas se ajeitaram. Para ela um cafezinho. Para as crianças suco. Eis que a menina tira da mochila que trazia nas costas um saco de pipoca doce. Aquela que vem numa embalagem cor de rosa. E devagarzinho ela vai se deliciando. Grão a grão. O menino que não tinha a guloseima incomodou-se. Foi ficando triste.

A mãe, vendo a agonia do menino, disse: "meu filho se quer pipoca peça à sua prima". Foi o que o menino fez. Rápida e timidamente. "Melina, me dá uma?". Mas a resposta da garotinha não foi a esperada por todos. "Não". Rafael começou a chorar. Estava criado o caos. Puxava a blusa da mãe, num pedido de socorro.

A mulher, por sua vez, sem saber lidar com a situação, resolveu dar um fim ao problema. Não tentou uma conciliação ou a famosa psicologia infantil. Decidiu intimidar a garota. Quem era ela para negar uma pipoca ao seu filho?

"Ah, não vai dar não?". "Não", reafirmou a menina. "Não faz mal. Sabe o que acontece com quem come tudo sozinha? Engorda. Fica desse tamanho, "Ó". Enquanto falava essas palavras para a sobrinha de cinco anos, a mulher fazia caretas e estufava as bochechas numa tentativa de ilustrar como ela ficaria caso comesse tudo sozinha.

Melina, obviamente assustada, resolve recorrer ao único recurso encontrado. Ela estava sendo acuada pela tia. Por um adulto. "Meu pai vai bater em você". A tia, não contente respondeu: "vai é? O pai dele vai bater no seu pai e, quer saber, talvez a titia nem deixe você entrar na casa dela, hoje".

E, assim, levantaram. Ela segurando cada criança em uma das mãos. A pequena com sua pipoca e sua mochila. Foram embora. Mas a história ficou. Os comentários das outras mesas também. Não foi uma situação engraçada. Foi trágica. Dolorida.

Para as crianças foi ensinado nessa pequena experiência que o importante não é dividir. É ter razão. Que, para tanto, vale tudo, inclusive, a violência física. Que a chantagem é válida na hora de resolver os problemas. Entre tantos outros valores equivocados. E, assim, as crianças crescem e se desenvolvem! E o Brasil continua sendo o país do futuro!

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Abril/2013

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Crônica 77: Sobre Protagonistas, Cotidiano e Provas


E aquele era um domingo normal. Normalíssimo. Eu ia e vinha nas bandejas titubeantes. Observava. Ouvia. Correria no salão. O céu, do lado de fora, por vezes se fechava. Por vezes se iluminava. Aquele arzinho frio, um tanto outonal. Enfim, nada excepcional.

No entanto, aquele podia ser um dia como outro qualquer para mim. Para a moça na mesa ao lado. Para o senhor que passava na rua. Para o bebê que dormia no carrinho. Mas para ele não era. Para ele era o dia. Um dia decisivo. Para qual havia se preparado.

Sentou-se um tanto ansioso. Senti suas mãos geladas em minha xícara. Um tanto trêmulas, talvez. O olhar apreensivo. E a respiração ofegante. Trazia consigo um caderninho com anotações. Canetas azuis e pretas. Lápis. Borracha. Apontador.

Sem dúvida estava a caminho de uma prova. Dava um gole em mim. Pegava o caderninho. Lia um trecho. Fechava e dizia baixinho: tudo que eu sei, eu sei. Melhor não ler mais nada. Mas não aguentava. Minutos depois, pegava o caderno novamente. Fechava rapidinho. Pegou uma revista. Deu uma lida. Não conseguiu se concentrar.

Foi então que tocou seu celular. Essa é a parte que eu nunca gosto. Ô aparelhinho antipático. Não ouço quem está do outro lado. Perco parte da história. Além de ter que conviver com os desagradáveis tremores causados na mesa pela sua função "vibrar". Pronto, falei.

Voltando para o nosso amigo. Ele atendeu o telefone e falava para alguém do outro lado da linha. "Eu não estou nervoso não. Fica sossegada. É... Cheguei cedo demais... Pois é, fiquei com medo de me atrasar.

Esse dia tão comum. Era para ele definitivo. Decisivo. Havia acordado às 5:30 h pra chegar às 8 h no local. Se é que dormiu. Era um dia daqueles em que "vai ou racha ou arrebenta as borracha". E ninguém percebeu. Ele não precisava, nem queria que percebessem.  Encontrou em mim, seu Cafezinho, uma boa solução. Meia hora depois levantou, esticou a camiseta. Certificou-se de que nada ficou esquecido sobre a mesa e sumiu na multidão que já se aglomerava nas ruas da cidade.
Era mais um. Meu personagem principal em questão de segundos, tornou-se mais um. Com seus problemas. Suas angústias. Sua calça jeans. Sua camiseta branca com uma mancha na barra. Mais um. E eu, como sempre, voltei para pia. Pronto para o próximo coadjuvante com ares de protagonista.

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Abril/2013

domingo, 17 de março de 2013

Crônica 76: Sobre Lágrimas, Maquiagem e Reticências


Eram habituês do meu salão. Um casal diferente é verdade. Ela cheinha. De saia rodada. E maçãs do rosto bem vermelhas. Ele, já seco pelo tempo.  Cabelos prateados. Pareciam mais pai e filha. Mas, não. Formavam, mesmo, um casal. Muitas carícias. Muitos abraços e beijos.
Ele cuidava do som ambiente que rolava no espaço. Ela esperava. E enquanto esperava me convidava à sua mesa. Eu talvez não fosse a companhia ideal. Era quieto demais. Mas, de certa forma, era quentinho e acolhedor. O que me garantia um lugar ali.
Estava tudo tranquilo. Como sempre. Vez por outra ele vinha até a mesa. Muitos olhares curiosos o acompanhavam. Era assim. Sempre. Eles estavam acostumados. E também estavam acostumados a brigar. Brigavam muito. Demais. Era cansativo.
No entanto, até aquele momento as coisas estavam em paz. E foi sem aviso prévio que um estrondoso, “como você pode?”, saiu da pequena boca escondida pelas bochechas infantis da menina. Falaram baixo. Murmuraram desaforos. Ele olhava para o os lados. Afinal, estava em seu local de trabalho. Ela olhava para baixo. Para mim.
Ele precisou voltar ao seu trabalho. Ela estava inconformada. Não compreendia. Depois de dar mais um golinho em mim, levantou-se. Não era o tipo que fazia gênero. Ou talvez fosse exatamente este tipo. Mas também não queria sair dali. Chorou. Chorou. Chorou tanto que todos a sua volta ficaram preocupados.
Eu que já estava gelado, afinal fazia frio, fiquei ali observando. Primeiro sentou-se uma funcionária do lugar sugerindo que ela fosse pro banheiro chorar. Poderia incomodar os clientes. Depois veio um garçom. Delicadamente lhe disse: “você está chorando por causa de homem, meu bem? Então escolha melhor seus pares”.
Seguiu-se a ele uma jovem. Conhecida dela. Que já figurou nas páginas deste cafezinho. Sempre bem arrumada. “O que houve querida?”. Com cada um deles. Cada um que tentou se aproximar. Ela havia conversado. Muito. A maquiagem já estava toda borrada. Lágrimas pretas lhe escorriam dos olhos.
Mas nada fazia com que parasse. Parecia que cada um que se sentava ali, estimulava mais sua autopiedade. Ou, talvez, sua demonstração de dor excessiva. Resolveu, por fim, “esconder-se” na área de fumantes. Não fui junto. Mas, ela não demorou. O tal, causador de tanta dor, apareceu.
E foi um abraço tão intenso. Ele parecia engoli-la naquele abraço. Ela baixou a cabeça. E enfiou fundo no seu peito. Ficaram ali pelo que pareceram dias. Fizeram as pazes. Ele precisava voltar ao trabalho. Antes de sair da mesa, perguntou-lhe: “você está bem? Espera-me?”. Fez que sim com a cabeça. Ele se levantou e dirigiu-se a mesa de som. E depois de tudo. Ela pegou sua bolsa e saiu... Sozinha... Agora, não chorava mais... Ria...

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Março/2013

domingo, 10 de março de 2013

Crônica 75: Sobre orgulho, escritas e uma pitadinha de Nietzsche



Entrou. Sentou. Escreveu. Escreveu. Escreveu.  Parou. Deu um gole delicado em mim. Colocou-me de volta no pires. Olhava para frente. Em sua cara uma expressão indefinida. Talvez uma mistura de sentimentos. Confusão. O jovem acariciou minha xícara. Mexeu com a colher. Dobrou o guardanapo. Tudo em ato contínuo. Sem perceber que se movimentava.

Estava absorto. As lembranças roubavam-lhe o presente. Lembranças, essas, não tão boas como gostaria. No entanto, tinham cheiro. Gosto. Som. Forma. Nome.  E, principalmente, expressão. Não conversamos. Ele considerava mais fácil escrever. Era daquelas pessoas que encontram no papel um consolo. Um território neutro. Uma forma de soltar. Deixar fluir. Sua vida. Seus amores. Seus encontros. Desencontros. Ele estava impresso. Ou, pelo menos, digitado e transcrito.

Não era fácil ser assim. Mas tudo bem. Curioso como sou, dei uma espiadela nas letras rabiscadas por aquele indivíduo de mãos aflitas. E olhos diáfanos. Seu mote era justamente a linguagem. Mais que isso sua forma. Mas, novamente parou. Ainda não havia saído do título. Escrevia. Riscava. Apagava. Reescrevia.
“Orgulho”. Era seu título. Como ele nos faz surdos aos próprios pensamentos. Aos próprios sentimentos. Bebericava sua segunda xícara de mim. As ironias e risadas descontextualizadas decorrente do que, pra ele, era o mais vil dos sentimentos.

Mais do que isso a cegueira ao outro. À vida do outro. Ao existir. O entender que ninguém está pronto. Acabado. Somos histórias em eterno desenvolvimento. Caindo no lugar comum, somos como o mar. Ora revolto. Ora calmo. E em alguns instantes recuamos tanto. Perdemos tanto de nós mesmos. Que só pode acontecer um tsunami ou algo do gênero.

Parou novamente. Sentiu-se confuso. Culpado em suas reflexões. Por, talvez, não ser tão diferente assim. Por mesmo triste saber que poderia cometer o mesmo erro. Mas era humano. Sentiu-se traído por si mesmo. Corresponder aos ideais de outrem não havia sido uma boa idéia. Tentara ser outro. Soara falso. Tentara ser ele mesmo. Soara agressivo. Por fim, optou por não ser.

E, então, lembrei de Nietzsche, quando disse em A Gaia Ciência... “Não te enchas de ar: a menor piscadela te esvaziaria”. E ele não pode ser tudo. Esvaziou-se.




Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Março/2013

segunda-feira, 4 de março de 2013

Crônica 74: Sobre Dores, Tatuagens e Contos de Fadas



A necessidade básica do coração humano durante uma grande crise é uma boa xícara de café quente.
Alexander King

A dor. Ah a dor. Uma sensação terrível e, ainda assim, tão procurada por vocês. De fato não entendo. Sabe, quando uma asinha da minha xícara quebra sinto arrepios. Fortes.  A dor pode ser física ou não. Dia desses uma jovenzinha, por volta de seus 16 anos falava à amiga: “Ele se foi. Dói tanto. Parece que todos meus ossos estão quebrados”. Os adolescentes. Sempre dramáticos. Mas ela não estava errada. A dor de amor é quase física. Assim como uma alma machucada. Uma razão traída. Ou a simples despedida.
Tchau. Palavra que dá medo. Que faz vocês tremerem dos pés a cabeça. Também não gosto de despedidas. A diferença é que pra mim representa apenas a possibilidade de uma história nova. De um amigo novo. Difícil entender. Outras tantas são as dores tão bem descritas pelos poetas parnasianos. Uma dor egoísta. Daquela que a pessoa se olha no espelho e chora. Até apieda-se de si mesmo.
Não contente com todas as variáveis existentes e inerentes de dor, ainda tem quem queira provocá-la. Fazendo uma tatuagem, por exemplo. Uma das minhas amigas mais queridas chegou lá em casa toda ardida. Uma gota de sangue escorria no seu liso dorso. A juventude lhe proporcionava costas invejáveis para as mulheres e desejáveis para os homens (metida essa minha amiga...). E aquela gota de sangue escorrera. Percorrera um caminho trôpego. Traçando uma estrada. Tudo por conta de um desenho. Não era grande. Nem pequena. “Estou apaixonada”, ela bradava. “Apaixonada pela minha tattoo”.
O importante, segundo ela, era exatamente sentir a dor. O ardor da queimadura na sua pele. Sem isso, que graça teria? A mãe não acreditava. Pra que isso filha? Você está procurando um motivo pra sofrer? Está querendo problema? É isso? A mãe não entendia a importância do definitivo. O Irremediável. Era isso que ela precisava. Uma paixão da qual não poderia se livrar. Jamais. E pra isso, nada mais justificável que a dor intensa.
O choro. Os soluços. Expressão tão comum da dor. Embora, euzinho, já tenha presenciado cenas de heroísmo. Onde ao invés de prantos, o homem dizia “estou bem, estou bem. Vamos para o hospital.”. E nem uma única lágrima descera naquele rosto.
Independente da expressão. Da forma como ela é sentida. A dor é tão comum ao ser humano quanto à vida. Ela fortifica dizem alguns. Ela nos faz sofrer, contestam outros. Mas também pode dar prazer. Existem casais, por exemplo, que gostam de brigas. Gostam de sentir a dor do amor. Só assim se sentem especiais. Outros precisam de dor na sua intimidade mais particular. E ainda existem aqueles que dela não abrem mão. Que a considera um aprendizado.
Seja como for, provocada ou não, ela marca. Ninguém a esquece. Nos contos de fada ela é um meio. Só através da dor é que o príncipe chega até a princesa. Na bíblia a dor pode ser redentora. E na vida? Nesse caso ela é verdade.  Seja como for a dor é um rasgo na alma que jamais poderá será cerzido.

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Março/2013

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Crônica 73: Sobre regras, exceções e Sartre


Por um instante sentiu-se especial. Mesmo sabendo que deveria ir embora ela queria ficar. E simplesmente sentir-se protegida. Mas, sabia que coisas assim não aconteciam na sua vida. Era só a bateria começar a bater em seu peito que logo o repique dava problema. Ou então era uma cuíca. Um surdo. Aliás, chegou à conclusão que a bateria de seu coração fora composta apenas por surdos.

Não que não ouvisse o que lhe diziam. Tinha prazer em ouvir. Mas pra quê? Aquela história já tinha acabado. Aquele caso já era perdido. Mesmo assim aceitou. Por mãos cuidadosas, talvez. Comprou a ilusão como se fosse peça em exposição em uma vitrine dantesca.

Foi nesse momento tragicômico da sua vida que nos conhecemos. Afinal, eu, o cafezinho, sou perfeito para aquecer corações. Quando entrou pude ver em seu semblante um misto de raiva, incompreensão e decepção. Talvez a última fosse a mais presente em seus pequenos e distraídos olhos. Olhos de quem reflete sua alma em um espelho.

Em sua mente podiam-se ler palavras ofensivas, situações desagradáveis, misturadas com o doce sabor do açúcar de uma hora atrás. Logo ela. Sempre tão esperta. Que costumava dizer tchau... Mas esse ela já havia dito. Sentia-se na pele de Mathieu, personagem de Sartre, que como ela estava na “Idade da Razão”. Racionalizando. Tentando descobrir o porquê permitiu. Por que teria feito isso consigo. E recordou-se com clareza de um trecho do livro. (...) É verdade, devia zangar-me. Seria normal. E talvez me zangue ainda. Mas por enquanto estou apenas tonto.

Uma lágrima desce seca pela sua bochecha magra e acaba em sua boca morna. Uma única lágrima. Já era o bastante. Lembrou-se de outras tantas que já rolaram em seu rosto. E compreendeu toda sua vida feita de despedidas. De desencontros e de momentos vazios.

E no seu último gole. Quando eu já estava frio, ela pensou: “se você tivesse pedido, eu teria aceitado...”

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Fevereiro/2013

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Crônica 72: Sobre Cafés, Culpas e Neologismos


Estava tranquilo. Um dia feio. Chuvoso. Daqueles em que sair da cama, ou da bandeja, nem pensar. Mas teve gente animada. Pessoas que decidiram tomar um delicioso e observador cafezinho. Pra esquentar. Sabe como é...
Assim, contra todas as expectativas criadas por mim – preciso deixá-las de lado – a casa lotou! Era café com chantilly para um lado. Com leite para o outro. Café com espuminha pra lá. Cafezinho expresso pra cá.
Um tal de garçom estressado correndo com a bandeja. E nessas horas, eu que me segure pra não cair.  Cliente irritado com a demora. Muito papo nas mesas. Beijos e abraços. E, principalmente, muita leitura. Revistas, livros, jornais, tablets, são amigos freqüentes.
Frequentei inúmeras mesas. Por fim, parei um pouquinho na mesa de um jovem casal. Os dois com um estilo bem particular no vestir. Mas eram jovens. Tinham uns dezoito aninhos e imaginei que ali eu teria uma boa dose de romance. Sabe, às vezes é bom.
No entanto, ao ser colocado na mesa. Junto ao açúcar e à colherinha. Me dei conta de que esse não era o caso. Minha ideia de um pouco de mimimi enquanto os pingos grossos caiam do lado de fora foi pro brejo.
“Você não vai dizer que a culpa minha, né?”, disse a jovem magrinha. Com um tom de voz baixo e bastante enfático. Não me dei ao trabalho de prestar atenção ao restante daquela conversa que começou e seguiria vazia.
Meu foco foi a questão colocada por ela. A culpa. Um ponto tão humano. Tão “Dostoévskiano”. Tão católica. Assim como Raskólhnikov, personagem de “Crime e Castigo”, as pessoas, hoje, vivem perturbadas. Sem saber como se tornarem melhor. E, principalmente, com culpa. Pelo que fizeram e pelo que não fizeram.
Acaba-se por não perceber que a culpa corrói. Atormenta. Falta, talvez, entender que a culpa inexiste, A responsabilidade, sim, É real. Palpável. E deve ser invocada em alguns momentos. Mas a culpa... Nada mais é que um sentimento abstrato. Usado para pesar sobre o outro. Ou vitimar a si mesmo. Como no caso em questão.
Não havia culpa naquela mesa. Podia haver qualquer outro fator. Mas não culpa. Eu saí antes que pudesse ouvir a resposta do rapaz. Mas se eu pudesse, diria: “Não, minha querida, a culpa não é sua. A culpa não existe. A culpa não é sólida. Não queira ter tudo, inclusive a culpa”.

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Janeiro/2013

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Crônica 71: O Amigo Indiscreto


Dia desses teve um amigo secreto de fim de ano lá em casa. Estavam presentes todos aqueles que contribuem diariamente para que EU, o seu cafezinho, seja servido da melhor maneira. 
Chegaram todos ao mesmo tempo. Não era dia de uniforme. Foram todos muito bem arrumados. De branco. A casa também estava enfeitada para recebê-los. Em tons de dourado. Em um primeiro momento houve um certo estranhamento. Apesar dos efusivos cumprimentos e desejos de boas festas.

Aos poucos foram se sentindo mais a vontade. Era um tal de um medir com os olhos os pacotes e sacolas dos outros. Os comentários pretendiam-se discretos. Mas, nem sempre atingiam esse objetivo. Segredos do tipo: “você viu o que o Silva trouxe? Ele não gastou R$50 naquilo nunca”. Também acho que não. Deve ter sido aquela mulher dele que comprou... Metida...
Havia uma mesa no canto do salão onde todos depositaram seus pacotes. Alegres. Cheios de expectativas. “Sabe, não quero nem ver o que eu vou ganhar. Sempre dou coisa boa e ganho mixaria. Tenho muito azar nesses “amigos””. Nem me fale. E assim seguiam as duplas e trios. Fofocando. Futricando. Fuxicando. E os presentes nem haviam sido entregues, hein?

Beberam. Comeram. A cerveja fez muito mais sucesso que eu essa noite. Fiquei um pouco enciumado. Tristinho. Mas era compreensível. Acompanhei tudo do balcão. Não me imponho. Só apareço quando sou chamado. Talvez seja por isso que muitos se digam viciados em mim.
Mas, voltando à festa. Depois de alguns copos, a nossa gerente anunciou super animada: “E ai, vamos começar nosso “amigo”?”.

Cada qual retirou sua sacola. Sentaram-se. Foi bem interessante assistir de longe a confraternização. Só assim, pude observar os sorrisos amarelos. Os “muito obrigado” falsos. Os “Ai, querida, adorei”, ditos com tanto entusiasmo que se poderia acreditar. A menos que se prestasse bastante atenção ao amargor do olhar.
Pequenas maldades não foram poupadas. “A minha amiga secreta é linda! É a Janaína!” Muito obrigada! Nossa, o que será? Empolgou-se com o peso do presente. Ao abri-lo... Nossa... Um livro de regime? Questionou. Com os olhos voltados para sua barriguinha saliente. Obrigada...

Conforme os presentes foram sendo entregues, as caras de decepção e os comentários maliciosos foram aumentando. A gerente foi a única que, genuinamente, gostou da sua lembrança. Quase no fim da reunião, alguém lembrou: Não vamos tomar café? Afinal, é por ele que estamos aqui!
Emocionei-me. Deu até tremedeira. Cumprimentei a todos. Fim de festa. Depois que o salão se esvaziou fiquei ali. Analisando. Por que as pessoas fazem esse tipo de festa? Talvez para se sentirem parte de algo. Talvez para se iludirem, pensando terem espírito de equipe. Ou, simplesmente, para terem certeza que alguém dedicou a elas parte de seu tempo.

Humanos são mesmo engraçados. Não seria mais fácil apenas presentear a quem se gosta? Mas e se eu der e não receber? Mais fácil combinar a troca. Mais fácil ir pelo caminho conhecido. Mais fácil ser previsível.
Como diz um grande amigo meu, o adoçante, a carência é o mal do século (ele leu isso em algum lugar, eu sei, mas vive repetindo).

Espero, sinceramente, que todos meus amigos e leitores tenham um lindo 2013. Que continuem acompanhando o blog e gerando histórias para este cafezinho, aqui!
Com açúcar e com afeto!
O seu Cafezinho

Mariana Primi Haas - MTB 47229                                                                                                                                        Janeiro/2013